Grande é poder dos livros na existência humana. Não é à toa que muitos foram queimados em praça pública, pois tudo aquilo que pudesse desestabilizar, questionar ou desviar os homens das normas ou dos padrões impostos pela sociedade deveria ser destruído.
Tantos são os livros que nos esperam para serem lidos, mas a existência é finita, por isso, alguns não são lidos, outros são guardados do lado esquerdo do peito, outros arquivados na memória, outros nos acompanham em momentos diferentes da nossa jornada.
Foi o que aconteceu com a obra A Casa, ganhador do prêmio Osmundo Pontes, no ano de 1999, da escritora cearense Natércia Campos. Minha primeira leitura aconteceu no ano de 2004, quando foi indicado para o vestibular da Universidade Federal do Ceará (UFC). Um texto de aproximadamente noventa páginas sem divisões de capítulos, imaginei que seria lido em três dias. Ledo engano! Levei pouco mais de um mês e ao finalizar fiquei com aquela sensação que nos encontraríamos novamente.
Em 2019, fui convidada para ministrar uma palestra na semana de Letras da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e precisava escolher uma escritora cearense. De pronto, pensei em Rachel de Queiroz (1910-2003), primeira mulher a ingressar na Academia Cearense de Letras, no ano de 1977. Depois, imaginei: mesmo quem ainda não leu a autora de O Quinze (1930), dela já ouviu falar. Lembrei-me, então, da filha do contista Moreira Campos (1914-1994), nascida na capital de Fortaleza, no dia 30 de setembro de 1938, moradora da Praia de Iracema, mas que gostava do cheiro e do sabor do sertão, que ela praticamente não conheceu.
A palestra na UECE me fez entrar em contato novamente com A Casa. Como reler é prazeroso e permiti-nos desvelar objetos, personagens e situações!. Nesta segunda leitura, deparei-me com uma casa, que além de narradora, personagem e espaço, é a personificação de um ser humano. A Casa conta-nos como foi construída – “Fui feita com esmero…” -, quando foi batizada “Foi em junho, na Hora-Aberta… que fui batizada pela chuva repentina e alvissareira…”, qual seu nome – “Na mais serena das horas canônicas, chamaram-me de Trindades” -, seu apelido – “Com o tempo puseram-me o apelido de Casa Grande” -, sua morte – “A casa irá para o fundo das águas…”-.
A vida nos reservou um terceiro encontro. Fui aluna do curso de contação de história da Escola de Narradores do Cariri, em 2020. Para formatura, uma história deveria ser contada. Esse foi, pois, meu terceiro encontro com A Casa, cujos moradores, Custódio – “cismado, furtivo” -; Bento “dotado de poderes de cura, assim afortunado por ter chorado no ventre materno”; Tia Alma, que passou a existência – “entregue à eterna peleja entre a Vida e a Morte” -; Bisneto – “viera gêmeo com uma menina, mas dela roubara suas forças da barriga da mãe e só ele de lá saíra com vida”; Maria – “Era ela incansável na difícil arte de arrumar, pôr em ordem e manter sempre limpos quartos e salas” – Eugênia, afilhada do Bisneto, nascida com sorte, mas “Ninguém escapa à roda do viver nem mesmo os empelicados” e alguns outros, como os Ventos e a Morte.
Natércia Campos e sua Casa me proporcionaram três experiências: a primeira, difícil, o que me desestabilizou; a segunda, apaixonante, o que me deleitou; a terceira, poética, o que definitivamente me conquistou e me fez compreender que no breve intervalo entre ler e reler uma obra se eterniza para um leitor.
Fonte: CAMPOS, Natércia. A Casa. Fortaleza: Editora UFC, 2004.
Sobre a autora:
Luciana Bessa Silva
Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler