Festejando o aniversário de Rachel de Queiroz

O Ceará comemora, em 17 de novembro, o Dia da Literatura Cearense. A data foi escolhida por ser o dia em que nasceu a cearense Rachel de Queiroz, uma das mais significativas autoras brasileiras. No âmbito dessas comemorações, refletimos sobre a inserção dessa autora no cânone literário nacional e, sobretudo, sobre sua vasta e polissêmica produção artístico-literária.  

Nascida em Fortaleza, em 17 de novembro de 1910, a autora já trabalhava na imprensa cearense na década de 1920, mas foi com a publicação de seu primeiro livro, O Quinze, em 1930, que ela recebeu atenção dos principais críticos da época e tornou-se conhecida em âmbito nacional. 

Em inúmeros contextos histórico-sociais a voz feminina sofreu cerceamentos. Isso ocorreu nos mais diversos espaços e, em nossa literatura brasileira, invariavelmente lastreada pelo patriarcado, não foi e não tem sido diferente. Rachel de Queiroz, porém, conseguiu se estabelecer nesse cenário complexo e, por vezes, excludente.   

Como rememora no livro Tantos anos (1998), ela sofreu severas críticas em Fortaleza ao publicar O Quinze. Aconselhada a enviá-lo para críticos do Sudeste, ela obteve amplo reconhecimento por seu trabalho artístico e, segundo Afrânio Coutinho (2001, p. 1326): “Na linha do documentário sociorregional, depois de A Bagaceira, a primeira obra é O Quinze, que consolida a ficção nordestina”.

Os que consideraram sua obra de estreia insignificante não esperavam que ela se tornaria tão proeminente no panorama literário nacional: 1) ela recebeu os mais relevantes prêmios da literatura de língua portuguesa (foi a primeira mulher a receber, em 1993, o Prêmio Camões), 2) tornou-se acadêmica da Academia Brasileira de Letras (sendo a primeira a conseguir isto) e da Academia Cearense de Letras, 3) permaneceu de 1945 a 1975 em evidência escrevendo crônicas numa revista de destaque (como foi a revista O Cruzeiro), 4) envolveu-se com rigor em assuntos políticos e 5) participou ativamente da vida literária nacional com direito a boas estratégias e muita persistência para integrar esse campo que, ainda no século XXI, exclui tanto as minorias sociais. 

Rachel de Queiroz entrou, sim, no cânone, mas para que isso ocorresse ela teve que driblar a tendência do campo literário de excluir as mulheres. Podemos afirmar que a mulher não conseguiu entrar nele sem empreender inúmeras lutas. Transposta a barreira do gênero, no entanto, Rachel de Queiroz participou dele com afinco. Supostamente discreta, como demonstra em seus textos e entrevistas, a verdade é que ela não se isentou de lidar com os jogos de poder indispensáveis para impor sua presença e firmar-se como uma das maiores autoras do país.  

Não podemos pressupor que foi tranquilo ser mulher e participar da literatura brasileira de seu tempo. Exemplo disso é que, quando seu primeiro romance foi publicado, embora com as críticas positivas que recebeu, supuseram que o texto havia sido escrito por um homem. Fica implícita a ideia, com isso, de que uma mulher não seria capaz de criar, do ponto de vista dos críticos e literatos da época, uma obra artístico-literária tão bem articulada, concisa, expressiva e, sobretudo, comprometida com o que há de estético e social em sua tessitura narrativa.  

O Quinze, que recebeu o Prêmio Graça Aranha, trouxe os principais temas que seriam retomados na carreira literária da autora: o forte telurismo, o sertão e suas múltiplas facetas socioculturais, o Nordeste como espaço a partir do qual as personagens se desenvolvem, a condição da mulher no século XX, dentre outros pontos. 

Quanto ao tema da presença feminina em suas obras, Rachel de Queiroz não hesitou em construir mulheres que destoam dos ditames estipulados socialmente. Suas heroínas buscam emancipação apesar das dificuldades impostas a elas. Nem sempre essas mulheres apresentadas pela autora são bem-sucedidas em suas metas existenciais, mas quais heróis romanescos do século XX conseguem obter sucesso em suas metas? 

Os romances da autora, também suas peças teatrais, trazem personagens femininas cujas existências entram em descompasso com as visões sociais vigentes. Assim, ela consegue discutir com maestria a pluralidade de sujeitos femininos, mesmo nas poucas obras protagonizadas por homens. 

Dentre outras obras, Rachel de Queiroz publicou: O Quinze (1930), João Miguel (1932), Caminho de Pedras (1937), As Três Marias (1939), Lampião (1952), A Beata Maria do Egito (1958), Dora, Doralina (1975), O Galo de Ouro (1986) e Memorial de Maria Moura (1992). 

No dia 17 de novembro, comemoramos o fato de Rachel de Queiroz ter existido e contribuído notavelmente para as letras de nosso país. Para comemorá-la, como ela merece, o mais pertinente seria conhecer a obra artístico-literária produzida por ela. Quando o assunto é entender as especificidades de sua escrita, e propagar a grandeza de sua arte literária, ainda há muito a ser dito. Por meio da leitura de suas obras, teremos a dimensão exata da pluralidade de suas temáticas e da expressividade de sua linguagem. Leiamos, então, o que ela construiu por nós e para nós.

No mais, é preciso conclamar: 1) o Brasil a lembrar sempre da produção artístico-literária dessa imortal de nossas letras, 2) o Nordeste a propagar essa voz feminina atenta à observação arguta de outras vozes, por vezes, silenciadas e 3) o Ceará a festejar um dos maiores nomes que legou ao país para a construção de uma literatura nacional de relevo.  

REFERÊNCIAS:

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução de Maria Lucia Machado. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

COUTINHO, Afrânio (org.). Enciclopédia Brasileira. 2. ed. São Paulo: Global Editora; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / DNL: Academia Brasileira de Letras, 2001.

QUEIROZ, Rachel de; QUEIROZ, Maria Luiza de. Tantos anos. 2. ed. São Paulo: Siciliano, 1998.

Sobre o autor:

Cícero Émerson do Nascimento Cardoso

Cícero Émerson é de Juazeiro do Norte/CE. Pesquisador, professor e escritor. São de sua autoria: Breve estudo sobre corações endurecidos (2011)os cordéis A Beata Luzia vai à guerra (2011) e A artesã do chapéu ou pequena biografia de Dona Maria Raquel (2012); A Revolta de Antonina (2015), A dança das contundências (2017), O Casarão sem Janelas (2018) e  O baile das assimetrias (2021)

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