Hilda Hilst e a relevância de uma autora (não) esquecida pelo cânone literário

Abro a Folha da Manhã,

Por dentre espécies grã-finas,

emerge de musselinas

Hilda, estrela Aldebarã


Tanto vestido assinado

cobre e recobre de vez

sua preclara nudez!

Me sinto mui perturbado.


Hilda girando em boates,

Hilda fazendo chacrinha,

Hilda dos outros, não minha…

(Coração que tanto bates!)

Mas chega o Natal e chama

à ordem Hilda: não vês

que nesses teus giroflês

esqueces quem tanto te ama?


Então Hilda, que é sab(ilda)

usa sua arma secreta:

um beijo em Morse ao poeta.

Mas não me tapeias Hilda.


Esclareçamos o assunto:

Nada de beijo postal.

No Distrito Federal,

o beijo é na boca – e junto.

(Carlos Drummond de Andrade)


Uma vez, fui questionada, por que alguns escritores são lidos e outros não? Por que o esquecimento está legado a uns (umas) e outros não? Naquela época, já não tinha respostas para tais perguntas, bem como não as tenho agora. Mas o que pode definir tais preferências? O estilo adotado pela autora? Os temas que ela aborda? A escola em que suas obras se encaixam? Ou o seu tempo? “O que faz Clarice Lispector ser mais lida do que Hilda Hilst?”

Aqui, descartamos os gostos pessoais, afinal, estamos falando de cânones literários, um dos muitos espaços não reservados à produção feminina. Por via das dúvidas, o cânone é definido como “um conjunto e seleção de obras que permanecem com o tempo e se destinam ao estudo por sua suposta qualidade estética superior. Essa seleção, enquanto favorece a algumas obras, invisibiliza muitas outras, a partir de critérios considerados por vezes controversos, questionados por sua ligação com o poder representado por uma classe dominante”. Qualquer produção que desvie do cânone, como o de uma minoria étnica ou de uma classe social não-dominante, tende a ser excluída.

Hilda Hilst, embora não fosse reconhecida, sabia o seu valor e sabia da sua condição. “Fiz uma revolução na Língua Portuguesa, enfoquei os problemas mais importantes do homem, procurei fazer o possível para o outro se conhecer. Fiz um lindo trabalho e não aconteceu absolutamente nada. Eu não fui lida”. Tudo o que Hilda queria era ser lida, muitas foram as vezes em que citou a poeta americana Edna Saint Vincent Millay: “Read me, do not let me die” (leia-me, não me deixe morrer).

O reconhecimento póstumo de Hilda Hilst é a prova de seu valor literário e sua relevância para as gerações de mulheres e escritoras posteriores à sua. Nascida em 21 de abril de 1930, em Jaú, em São Paulo, a autora de Poemas Malditos, Gozosos e Devotos (1984) sabia que se fosse um homem e escrevesse em outra língua, obteria o tão desejado sucesso, mas estava presa às limitações de seu gênero. Todavia, estas não a impediram de adentrar os espaços que lhe eram negados.

Em 1948, foi uma das primeiras mulheres a ingressar na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, onde conheceu a autora Lygia Fagundes Telles, que, dali em diante, se tornaria uma amiga para toda a vida, uma companheira para compartilhar as dificuldades do ofício de ambas. Foi em 1950 que Hilda Hilst fez sua estreia na literatura, com o livro de poemas Presságio. Foi também a primeira obra da autora a enfrentar os julgamentos de uma sociedade machista, desacreditado, pois aquele não poderia ter sido escrito por uma mulher.

Por volta dos 60 anos, a filha do fazendeiro, poeta e jornalista Apolônio de Almeida Prado Hilst deixa para trás a “ literatura séria” e envereda pelas nuances da escrita pornográfica, com a publicação de O Caderno Rosa de Lory Lamby (1990), a primeira que integra a sua tetralogia obscena. 

Hilda escreveu por quase 50 anos. Sua obra, composta por mais de quarenta títulos, dividida entre poesia, teatro e ficção, é permeada por misticismos e erotismo; reivindica a libertação sexual feminina; é intensa e fragmentada. A autora de A Obscena Senhora D (1982) rompeu com os estereótipos sociais, foi ousada e consciente. É impossível sair ileso de uma leitura de Hilst, por tudo isso, façamos jus ao seu desejo. Leiamos Hilda Hilst, não deixemos que ela morra no esquecimento, a ela designado.

REFERÊNCIAS:

HILDA HILST, POR CAIO FERNANDO ABREU. Letras In.verso e Re.verso, 2007. Disponível em https://www.blogletras.com/2007/12/emily-dickinson-por-ana-cristina-cesar.html. Acesso em: 11 maio 2022.


MARTINS, Lílian (ed); NETTO, Raymundo (org). Curso Literatura Cearense. Fortaleza, CE : Fundação Demócrito Rocha, 2020.

Sobre a autora:

Shirley Pinheiro

Graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri.

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