“Aconteceu de eu estar e observar.
Acima de mim uma borboleta branca tremula no ar
as asas que só pertencem a ela
e passa sobre minhas mãos uma sombra,
não outra, não de outra qualquer, mas dela somente.
Diante de tal vista sempre me abandona a certeza
de que o importante
é mais importante do que o desimportante.”
(De Um amor feliz, tradução de Regina Przybycien, edição da Companhia das Letras.)
Quando despertei para a leitura de poesia contemporânea, as redes sociais foram (e continuam sendo) minhas primeiras fontes de acesso. Passei a acompanhar páginas de poesia e de poetas novos e pouco conhecidos, sempre usufruindo de suas próprias produções e desfrutando das suas referências. Foi assim que, em uma noite insônia, me deparei com a poesia de Wisława Szymborska. O poema em questão era “Quatro da Madrugada”, que resumia os sentimentos que se abrigavam em meu peito àquela hora do dia. Na época, eu ainda não sabia o nome da poeta (hoje não sei pronunciá-lo), mas anotei o poema no caderno e decidi que mais tarde descobriria sua origem, mal sabia que os versos que me tocaram naquela madrugada vinham do outro lado do mundo.
“Hora vazia.
Surda, vã.
O fundo de todas as outras horas.
Ninguém se sente bem às quatro da madrugada.
Se as formigas se sentem bem às quatro da madrugada
— felicitemos as formigas. E que soem as cinco
se é para continuar vivendo.”
Wisława Szymborska nasceu em 2 de julho de 1923 em um povoado na Polônia, onde viveu por oito anos, até se mudar, com a família, para Cracóvia, uma cidade mais ao sul do país, localizada a cerca de 66 km de Oswiecim, onde, mais tarde, foi construído o maior campo de concentração estabelecido pelo regime nazista. O maior símbolo do holocausto, foi o sétimo de um complexo de campos cujas finalidades eram aprisionar os inimigos e exterminar os grupos perseguidos pelos nazistas, em sua maioria judeus, mas que também incluíam homossexuais e deficientes físicos, que se somam aos mais de 60 milhões de mortos no conflito encabeçado pela Alemanha.
Foi em contexto de guerra que Wisława Szymborska passou parte da sua juventude. Quando as tropas alemãs invadiram a Polônia, na madrugada de 1º de setembro de 1939, dando início à Segunda Guerra Mundial, uma de suas primeiras providências foi restringir o acesso das crianças à escola. No entanto, mesmo diante do maior conflito da história da humanidade, Szymborska terminou os estudos clandestinamente, mas, anos mais tarde (em 1945), por questões financeiras, não conseguiu concluir os cursos de literatura e sociologia e só mais tarde formou-se em filologia e sociologia.
Porém, na mesma época, Wisława Szymborska começou a publicar seus primeiros poemas em jornais poloneses e passou a integrar uma parte importante no cenário literário do país. Embora dissesse que sua poesia era “estritamente não política”, e sim “sobre as pessoas e a vida”, sua vivência é marcada por acontecimentos políticos, que podem ser destacados em seus versos e, em 1987, no poema “Filhos da Época”, a autora reconhece que a vida e as pessoas são temas da política:
“Somos filhos da época
e a época é política.
Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.
Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.
O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.
Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.
Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.
[…]”.
Suas primeiras coleções de poemas foram publicadas em 1952 e 1954 respectivamente, quando Szymborska fazia parte do Partido dos Trabalhadores Poloneses. Já a terceira foi escrita durante sua insatisfação com as ideologias do grupo e veio a público em 1957, pouco antes de abandonar o partido. Ao todo, sua produção conta com treze volumes, das quais ela rejeita os dois primeiros, justamente pela adesão da estética e pensamento socialista.
Em suas obras é possível encontrar diversos poemas que se aprofundam a respeito da História e seus crimes. A Segunda Guerra Mundial deixou inúmeros vestígios em sua escrita — “Depois de cada guerra/ alguém tem que fazer a faxina./ Colocar uma certa ordem/ que afinal não se faz sozinha” — que ela transformou em um alvo constante de suas críticas, como uma sombra, da crueldade humana e sua falha como ser civilizado. Em “Primeira Foto de Hitler” ela questiona que rumos ele poderia tomar quando garoto — “E quem é essa gracinha de tiptop?/ É o Adolfinho, filho do casal Hitler!/ Será que vai se tornar um doutor em direito?/ Ou um tenor da ópera de Viena?/ De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?/ De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe;/ de um tipógrafo, padre, médico, mercador?/ Quais caminhos percorrerão essas pernocas, quais?/ Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório/ com a filha do prefeito?”.
Wisława Szymborska foi poetisa, crítica literária, ensaísta e tradutora. Foi a polonesa mais traduzida no exterior, para, ao todo, 36 línguas diferentes. Em 1996, tornou-se vencedora do Prêmio Nobel de Literatura e sua obra reverbera até hoje pelos quatro cantos do mundo, atraindo novos leitores e encantando com sua poética.
Sobre a autora:
Shirley Pinheiro
Graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri.