Shirley Pinheiro
Sobreviver como uma pessoa LGBTQ+ no Brasil é uma luta diária. Tá aí a historiografia que não me deixa mentir. A perseguição de pessoas da comunidade na história do nosso país tem raízes profundas, influenciada por fatores religiosos, culturais e políticos que remontam ao período colonial. Desde o início da colonização portuguesa, o Brasil herdou leis e valores da Inquisição, que considerava atos homossexuais como crimes e pecados. No período imperial e início da República, atitudes e comportamentos considerados “escandalosos” ou contrários à moral pública eram usados para perseguir pessoas LGBTQ+ e, embora não houvesse uma legislação específica para punir a homossexualidade, havia um forte estigma social, e as autoridades frequentemente utilizavam leis sobre “atentado ao pudor” ou “conduta indecente” para justificar a repressão.
Mas foi a partir da ditadura militar, em 1964, que essa perseguição se intensificou. O regime ditatorial passou a promover um ideal rígido de moral e bons costumes muito parecidos com o que enfrentamos hoje em dia, no qual a heterossexualidade e a família tradicional eram exaltadas. A repressão a movimentos de contracultura e minorias sexuais foi constante e violenta. Policiais e militares realizavam batidas em espaços frequentados pela comunidade LGBTQ+, como bares e clubes noturnos, prendendo pessoas sob acusações de comportamento imoral. A censura oficial também limitava a representação de temáticas LGBTQ+ na mídia e na literatura, silenciando muitas vozes. Durante esse período, figuras públicas e artistas que eram assumidamente LGBTQ+, ou cujas obras abordavam a homossexualidade enfrentaram forte censura e perseguição. O principal e talvez maior exemplo dessa perseguição é o da escritora Cassandra Rios, a escritora mais censurada do Brasil.
Nascida em 4 de outubro de 1932, em São Paulo, Cassandra Rios, pseudônimo de Odete Perez Rios, foi uma das autoras mais polêmicas e prolíficas da literatura brasileira e teve 36, de seus 59 livros, censurados pela ditadura militar. Aos dezesseis anos, escreveu seu primeiro livro, A volúpia do pecado (1948), publicado com o dinheiro que pediu emprestado à mãe, após receber vários “nãos” das editoras contatadas por ela. A obra conta a história de amor entre duas meninas. A partir daí, dedicou-se a escrever romances com temáticas consideradas tabu para a época, como sexualidade feminina, homossexualidade, erotismo e relações de poder.
Cassandra Rios foi a primeira autora a retratar o amor lésbico de forma explícita na literatura brasileira, o que a colocou em rota de colisão com a censura da ditadura militar. Sua obra foi amplamente censurada, e muitos de seus livros foram apreendidos e proibidos, principalmente entre 1970 e 1985, período em que o Ato Inconstitucional nº5 – AI-5 – esteve em vigor. No entanto, apesar de toda a censura sofrida, o sucesso da autora de Eu sou uma lésbica (1981) e Carne em delírio (1948) ultrapassa gerações. Ainda em seu período de atividades, ela foi a primeira escritora a alcançar a marca de 1 milhão de livros vendidos no Brasil e foi também a primeira autora a viver exclusivamente da venda de seus livros. Sua única profissão foi a de escritora.
A escrita de Cassandra Rios gerou muitas controvérsias, conhecida como a “escritora maldita”, o teor pornográfico e homossexual chocava os falsos moralistas de sua época. Em entrevista ao Jornal Manchete, em 1969, Cassandra afirma, “Sou moralista. Pornográfica é a mente de quem não sabe ler. Nos meus livros talvez eu seja realista demais, mas, se existe uma ou outra cena violenta, ela é apenas um dado necessário ao desenvolvimento do tema. Pornografia é a literatura que trata de sexo pelo sexo apenas. Nos meus livros, a tônica é o amor”.
Com o fim da ditadura militar e a abertura democrática, Cassandra Rios passou a ser reconhecida como uma das vozes mais autênticas e corajosas da literatura brasileira. Mesmo que seu estilo tenha continuado a gerar controvérsia, ela conquistou um lugar definitivo na história literária do país, principalmente pela sua contribuição à literatura erótica e à representação da diversidade sexual. Hoje, sua escrita é vista como um marco na representação da sexualidade na literatura brasileira, e sua ousadia como uma inspiração para novas gerações de escritores e leitores.
Sobre a autora:
Shirley Pinheiro
Graduada em Letras pela Universidade Regional do Cariri.