Simone de Beauvoir (1908-1986), intelectual, ativista e escritora francesa nasceu e viveu em uma época/espaço que não vivi, que não conheci (presencialmente), mas que experimento hoje por meio de suas narrativas, sejam elas teóricas – O segundo sexo (1949) -, sejam elas ficcionais – A mulher desiludida (1967).
É verdade que não entendo francês. Mas, se pudesse renomearia esta última para “As mulheres destruídas”, já que se trata de três protagonistas em três narrativas diferentes, mas que dialogam entre si: “A idade da discrição”, “O monólogo” e “A mulher desiludida”.
Por que não desiludida? Embora o vocábulo signifique “decepcionada”, “desenganada”, “desapontada” tais mulheres, mais do que sofrer uma decepção, um desapontamento, tiveram suas vidas destruídas (amorosa, maternal, intelectual, financeiramente) pela sociedade francesa patriarcalista do século XX. Não podemos nos esquecer que a França foi um dos últimos países europeus a conceder o sufrágio feminino no ano de 1944. Em contrapartida, no século XXI, em 2024, se tornou o primeiro país da Europa a inscrever a “liberdade garantida” ao aborto em sua Constituição. Simone de Beauvoir, para quem o corpo é um elemento central em suas obras, é a “nossa tomada de posse do mundo”, um “esboço de nossos projetos”, vibraria com essa decisão.
Quando uma sociedade destrói uma mulher? Quando, por exemplo, cria regras e valores inalcançáveis. Quando legitima os diferentes tipos de violência em nome de um bem maior, a família. Quando apregoa que lugar de mulher é em casa cuidando do marido e dos filhos. Quando, ao desenvolver o mesmo trabalho desenvolvido por um homem, recebe um salário inferior. Quando atesta que a terceira jornada de trabalho é de sua exclusiva competência. Quando seu corpo é propriedade do masculino etc. Entendem agora por que não “desiludida” e sim “destruída”?
A mulher desiludida, lançado em 1967, é protagonizado por três mulheres brancas e burguesas, que veem suas vidas serem destruídas, quando suas relações com a sociedade, através da relação com os filhos, com o marido e com a idade, começam a ruir.
Na primeira narrativa, “A idade da descrição”, temos uma protagonista sem nome, já que poderia ser qualquer uma de nós, que se encaminha para a velhice, mas não a aceita. “Meu relógio parou? Mas os ponteiros parecem não andar”. Como se não bastasse, andava agoniada com seu corpo, “um corpo de velho, apesar de tudo, é menos feio que um corpo de velha, disse a mim mesma…”. Sentia-se vazia, após o sucesso de seu “livro sobre Rousseau”, enraivecida com a crítica especializada que a acusava de ser repetitiva em seu novo estudo sobre Montesquieu. Além disso, seu filho Filipe, resolve abandonar a tese dele, deixar a universidade, posto que “O ensino, a pesquisa são em realidade, muito mal pagos”. Instaura-se o caos nessa família, e essa mulher sente-se apunhalada pelas costas por todos que estão ao seu redor.
A segunda narrativa, “O monólogo” é iniciado por uma epígrafe do criador de Madame Bovary – Gustave Flaubert (1821-1880): “Ela se vinga o um monologo”. Mesmo sozinha, a protagonista não se cala. A técnica narrativa adotada é o fluxo de consciência, a fragmentação. A pontuação é praticamente inexistente; a narrativa, dinâmica e espantosa. A narradora, Murielle, vomita toda a sua dor de existir depois do divórcio, da perda da custódia do filho e o suicídio da filha. Na noite de Ano-Novo, ela se vê sozinha e incomodada com o barulho dos vizinhos, ou melhor, com a felicidade, com a alegria e a algazarra que essa data traz: “Eu vejo todos eles daqui é nojento demais se esfregam um contra o outro sexo com sexo…” É uma mulher sem referência familiar, pois tinha uma péssima relação com o irmão e a mãe, “Aos setenta anos de saia curta com a cara toda pintada”, que só conseguia se enxergar dentro de uma família: “Que merda; eu quero ser respeitada quero meu marido meu filho meu lar como todo mundo”.
A terceira narrativa, que dá título ao livro, é escrita em forma de diário. A protagonista, Monique, uma mulher por volta dos quarenta e três anos, vinte e dois deles casada, mãe de duas filhas – “Colette casada, Lucienne na América,” entra em colapso quando seu marido, Maurice, o centro de sua existência, conta-lhe que está tendo um caso com outra mulher, Noellie Guérard, uma advogada “bonita, brilhante, atraente”. No começo, Monique aceita o caso extraconjugal do marido aconselhada pela amiga Isabelle. Enquanto Monique e Maurice tinham uma relação pautada na fidelidade, Isabelle e Charles eram movidos pela liberdade, por isso, a amiga achava “natural que ele [Maurício] tenha querido uma aventura…”. Com o tempo, Monique percebe que não se tratava de um simples caso, seu marido estava apaixonado por Noellie. Ele acaba por abandoná-la.
Cinquenta e oitos anos após sua publicação, A mulher desiludida segue atual. Sua leitura nos possibilita compreender que apesar de tantas conquistas no campo sexual e profissional, o casamento, a maternidade e a velhice ainda são pautas que atingem em cheio o universo feminino. O debate continua.
Sobre a autora:

Luciana Bessa Silva
Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler