Era por volta das 5h da manhã; o sol ainda estava escondido. Dava para ver da janela do quarto, os galhos das árvores balançando lentamente. Levantei da minha cama e fui preparar meu café da manhã. O cheiro do café passando pelo coador era tão forte e presente que toda a sala foi tomada pelo delicioso aroma quente. Com a frieza que fazia naquele momento, o cheiro era acolhedor.
Após o café estar pronto, enchi uma xícara generosa e fui até a porta para assistir ao nascer do sol. O clima estava ainda mais frio do que parecia. Sentei no pé da porta e fiquei aguardando. O tempo parecia parado. Levantei e dei cinco passos; senti a grama gelada em meus pés descalços, mas era tão macia que parecia que eu estava caminhando sobre algodões gelados. Essa sensação era única — foi a primeira vez que eu desfrutava daquela paisagem.
Passaram-se vários minutos, e o sol não nascia. O clima era de uma neblina que deixava a vida cinzenta, mas ainda assim confortável.
Comecei a estranhar aquele silêncio tão profundo, como se o mundo tivesse parado de respirar. Nenhum som de pássaros, nenhum barulho vindo da cidade — apenas o farfalhar lento das árvores. O tempo seguia imóvel, e o sol, escondido atrás da neblina espessa parecia ter desistido de nascer. Uma inquietação tomou conta de mim. Aquilo não era normal. O ar parecia mais denso, pesado nos pulmões, e um calafrio percorreu minha espinha. Com o coração acelerado, olhei ao redor, esperando encontrar algum sinal de que não estava sozinha, mas havia apenas o vazio. Tomei uma atitude impulsiva: entrei novamente em casa, fui até a cozinha e peguei uma pequena faca de ponta arredondada que ficava sobre a pia. Sem pensar muito, pressionei-a com força contra o meu antebraço em um gesto desesperado de confirmação.
A dor foi imediata, aguda e lancinante, como uma agulha atravessando minha pele e arranhando os ossos. O corte não foi profundo, mas o suficiente para fazer o sangue escorrer lentamente, quente, contrastando com o frio ao redor. Meus olhos se encheram de lágrimas — de dor e de medo. O chão parecia girar sob meus pés. O aroma do café, antes reconfortante, agora se misturava ao cheiro metálico do sangue, tornando o ambiente sufocante. A neblina lá fora começou a invadir a sala pela fresta da porta, como se o mundo exterior estivesse tentando engolir o interior da casa. Sentei no chão pressionando o corte com um pano qualquer. A dor era real, mas algo dentro de mim ainda dizia que aquilo não fazia sentido. Eu sentia cada segundo como se fosse uma eternidade — e, mesmo sangrando, ainda não tinha certeza se estava acordada.
Com o pano ainda pressionado contra o corte, me levantei cambaleando, tomada por uma angústia crescente. Cada cômodo da casa parecia maior, mais escuro, como se as paredes tivessem se afastado entre si. Abri todas as portas e janelas em busca de uma saída — uma fuga daquele silêncio que gritava. Corri para o quintal, onde a névoa agora cobria tudo como um véu espesso. Foi então que a vi. De longe, bem próxima ao pé da árvore maior, havia alguém agachado. Meu coração disparou. Me aproximei devagar, e quando a figura levantou o rosto, meu corpo congelou. Era eu. Eu mesma. Mas um pouco mais nova, talvez com uns doze ou treze anos, vestindo um casaco antigo que nem lembrava mais de ter.
Tentei chamá-la, mas minha voz não saía. Ela apenas me olhava com uma expressão serena, quase triste. Seus olhos pareciam pedir algo que eu não entendia. Dei alguns passos em sua direção, mas algo invisível me impedia — como uma parede de vidro, fria e impenetrável. Estendi a mão, mas ela não reagiu. Era como olhar para um reflexo que não correspondia aos meus movimentos. A neblina ao redor girava lentamente, como se o tempo ali estivesse suspenso. A sensação de dor em meu braço parecia ter desaparecido diante daquele encontro surreal. Tudo em mim gritava para me aproximar, tocá-la, entender o que aquilo significava, mas quanto mais eu tentava, mais ela parecia se afastar, mesmo sem mover os pés. Era como se eu estivesse diante de um fragmento do passado — um segredo meu que o sonho insistia em lembrar.
Num piscar de olhos, a névoa começou a se dissipar, lentamente, como se fosse sugada de volta para algum lugar invisível. A menina — eu — desapareceu com ela, como se nunca tivesse estado ali. O ar ficou mais leve, e a claridade tímida do amanhecer finalmente começou a colorir o céu. Olhei em volta, confusa, e percebi que estava novamente sentada no pé da porta com a xícara de café quente entre as mãos, intacta, sem nenhum corte no braço. As árvores balançavam suavemente, o cheiro do café era acolhedor, e a paisagem era a mesma de antes. Por um momento pensei ter acordado de um sonho estranho — mas algo em mim sabia que aquele ciclo não tinha terminado. Era como se tudo estivesse prestes a começar outra vez.
Sobre a autora:

Hillary Siqueira
Barbalhense e estudante de Direito no Centro Universitário Dr. Leão Sampaio (UNILEÃO)