As mulheres de O Quinze, de Rachel de Queiroz

A escritora francesa Simone Beauvoir (1908-1986) em sua obra O Segundo Sexo (1949) propunha que a mulher construísse o seu próprio destino. Para isso, seria necessário romper com os padrões criados pela sociedade patriarcal de que o gênero feminino deveria ser alicerçado na anatomia da “boa esposa”, “boa mãe”, responsável pelo sucesso do “núcleo familiar”.

Simone de Beauvoir, que visitou o Brasil na década de 1960 em companhia de Jean Paul-Sartre (1905-1980), inspirou (e continua inspirando) mulheres no mundo todo a partir de suas reflexões sobre a construção social do gênero feminino. Não sei se a escritora brasileira Rachel de Queiroz (1910-2003) leu Beauvoir, porque em várias entrevistas, ela afirmava não ser feminista: “Não sou feminista: acredito no homem e na mulher como pessoa humana”.

Talvez por acreditar na força da mulher, em praticamente todos romances de Rachel, o protagonismo é feminino. Em O Quinze (1930), retrato ficcional da seca de 1915, uma das maiores tragédias do Nordeste com uma estimativa de 500 mil mortes, a protagonista é Conceição – professora, leitora, adepta as causas sociais.

Ela não é a única. A narrativa é permeada por outras mulheres, seus sonhos, sua força e suas dores. Dona Inácia (Mãe/avó da protagonista), Cordulina (Esposa de Chico Bento e mãe de cinco filhos), Idalina (prima de Dona Inácia e mãe de Vicente, Paulo, Alice e Lourdinha), Eugênia (Patroa de Mocinha), Mariinha Garcia (Moradora de Quixadá, interessada em Vicente), Chiquinha Boa (Moradora da fazenda de Vicente), Zefinha (filha do vaqueiro Zé Bernardo), Dona Maroca (Dona da fazenda Aroeiras em Quixadá).

Em uma época em que poucas mulheres frequentavam os bancos acadêmicos, Conceição era uma leitora arguta. Lia em Português e em Francês. “Foi à estante. Procurou, bocejando, um livro. Escolheu uns quatro ou cinco, que pôs na mesa, junto ao farol. Aqueles livros – uns cem, no máximo – eram velhos companheiros…” (p. 8). No entanto, lastimava por ter uma estante “muito pobre”, com “tudo quase decorado”.  Muitas dessas obras ela herdou do seu avô: “livre-pensador, maçom e herói do Paraguai” (p. 9). Assim como Rachel (criadora), Conceição (criadora) teve um “Teto todo seu”, lembrando Virgínia Woolf (1882-1941), para se desenvolver intelectualmente.

Além disso, Conceição abraçou o magistério:  era professora. Morava na capital e nas férias ia para o Logradouro, fazenda da família, perto de Quixadá: “Chegava sempre cansada, emagrecida pelos dez meses de professorado…” (p. 9). Sabemos que estar em sala de aula é cansativo não só ponto de vista físico, mas psicológico.

Como se não bastasse, aos vinte e dois anos de idade, Conceição “não falava em casar”. A avó sentenciava: “mulher que não casa é um aleijão…” (p. 10), alguém mutilado, deformado. Casar e ter filhos, na segunda metade do século XX, parecia ser o fim único do gênero feminino.

A avó Nácia, protótipo da mulher do sistema patriarcal, ficava horrorizada com as conversas da neta e dizia: “– Esta menina tem umas ideias!” Lembramos que nome “Conceição” significa concepção. A protagonista de O Quinze (1930), ao invés de conceber uma vida, concebia ideias: “Acostumada a pensar por si, a viver isolada, criara para seu uso ideias e preconceitos próprios…” (p. 10). Uma de suas ideias era que não conseguiria ser feliz ano lado do primo Vicente.

Ele gostava do campo, do gado. Ela da capital, dos livros. “Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera o Machado… Nem nada do que ela lia” (p.78). Então, ela pensou “no esquisito casal” que eles formariam, quando, nos serões da fazenda, ela não teria com quem compartilhar suas impressões recebidas. O ditado popular “Os opostos se atraem” não se encaixava nos padrões de relação almejado pela protagonista.

Além das ideias de liberdade e solitude, Conceição fazia parte da comissão de senhoras que distribuía comida e medicamentos no Campo de Concentração, ela resolveu conceber a maternidade por meio da “adoção” do afilhado Duquinha, já que os pais (Chico Bento e Cordulina) estavam de partida para São Paulo em busca de melhores condições de vida.

A força de O Quinze (1930) está nas personagens feminina resistindo não só às adversidades climáticas, mas aos entraves afetivos, morais, sociais e políticos. Está em acompanhar a trajetória de Conceição e sua resistência para ser dona de seu próprio destino: não casar, não ter filhos biológicos, mas desempenhar um papel relevante dentro da sociedade ao abraçar o magistério e as causas sociais.

QUEIROZ, Rachel. O Quinze. Editora Sciliano, 1993.

Sobre a autora:

Luciana Bessa Silva

Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler

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