Publicado em 2023 pela editora Companhia das Letras, Caminhando com os mortos, da escritora pernambucana Micheliny Verunschk, é uma obra forte, marcada por capítulos curtos, não lineares, linguagem fluída e dinâmica, cujas personagens, invisibilizadas e alienadas pelo sistema capitalista, tornam-se presas fáceis para os pregadores da palavra divina.
Verunschk, que iniciou sua carreira literária na poesia, Geografia íntima do deserto (2003), tem até o presente momento doze obras publicadas: seis livros de poemas, um de contos e cinco romances, dos quais os últimos dois foram premiados: O som do rugido da onça, 2022, Prêmio Jabuti e Caminhando com os mortos, Prêmio Oceanos, no ano de 2024, um dos mais importantes em Língua Portuguesa.
A narrativa analisada, segundo depoimento da própria autora ao Quatro cinco um (2023), faz parte de seu projeto literário de pensar um Brasil, a partir de suas múltiplas violências. Em O som do rugido da onça, 2022, a violência contra os povos originários. Em Caminhando com os mortos, 2023, contra as mulheres. Trata-se, pois, de “histórias de zumbis”, ou seja, de pessoas que estão cegas ante às atrocidades alheias. Verunschk, ao iniciar sua caminhada com os mortos, leu uma notícia de que uma mulher, tal como as bruxas da Idade Média, havia sido queimada viva em pleno século XXI. Como se não bastasse, um dos seus amigos homossexual, também foi queimado.
Não é à-toa que em Caminhando com os mortos, 2023, o leitor conhece Pedro, professor, que também não conseguiu escapar da intolerância quanto à sua orientação sexual, como se observa: “Você é bicha? / Por quê? / Me falaram que você é bicha? O que é uma bicha?”.
Caminhando com os mortos (2023) é uma narrativa pautada no mau uso da religião, servindo de ferramenta para manter o poder social, econômico e político de uma minoria. Nela conhecemos a trajetória de traumas vivenciados pela família de Lourença (mãe), Ismênio (pai), Zaqueu, Quitéria e Celeste (filhos).
Ainda em Mororó, o casal perde a filha pequena Quitéria de maneira trágica. Enquanto Ismênio trabalhava na lavoura, Lourença deixou a criança dormindo para ir deixar o almoço do marido. Foi “num pé” e voltou no outro, mas ao retornar Quiterinha havia sido comida pela “porca de um morador vizinho, aquela que não tivera os dentes serrados…”. Esse fato gera uma dor descomunal na vida da família, por isso, a mudança para Tapuio, numa casa “levantada com o auxílio da comunidade”. Lourença achou que seria um novo começo. “Mas qual! Trabalho findo e o coração boiando nas trevas, mugindo abafado, bicho arrastado pela correnteza”. Dor é sentimento infindável.
Lourença, à princípio, culpou Deus. Depois de um ano do fato ocorrido, já grávida de Zaqueu, ela vendo a igreja fechada e imunda, resolveu “deixar o entorno da casa de Deus o mais limpo possível”. E, assim, procurou “ficar mais perto de Jesus, que dissera, vinde a mim as criancinhas”. Almejava ficar mais perto de Quiterinha.
Em pouco tempo, foi chamada de doida, sacristã. Mas, dizia: “Se a gente não zelar pelo Tapuio, quem zelará?”. Foi quando um “pastor chegou no Tapuio e comprou por uma grande a casa e o terreno de Vitorino…”. Ninguém desconfiou, principalmente porque se tratava de gente com “a boca cheia de palavras bem arranjadas e dispostas com cuidado, a camisa dele sempre alva, bem engomada, as mangas compridas, fizesse calor ou frio”. A aparência foi fator decisivo para a comunidade aceitasse facilmente o novo morador. Ao saber que era um crente, Lourença se mostrou aberta a acolhê-lo, já que acreditava que só “alguém que viesse verdadeiramente em nome de Deus poderia querer se estabelecer naquele lugar…”, ou seja, onde os moradores eram esquecidos pelo poder público. O povo ficou tão satisfeito, pois naquele instante, “Tapuio parecia ganhar em importância. E, desse modo, a crença na boa vontade do forasteiro fora cimentada”. Diz-se a boca miúda que é mais fácil se curar de um câncer do que matar uma ideia. Foram justamente as ideias de “perdição”, “diabo”, “bruxa”, maldição”, “pecado” que levaram Celeste, Pedro e outras duas mulheres para a fogueira.
Segundo a autora, “(…) os mortos não nos deixam”, eles “caminham com a gente”, eles “compõem uma nação muito maior do que os outros, estes que estão vivos”. É por isso que nossa memória é povoada da presença daqueles que se foram.
Caminhando com os mortos (2023)é um caminhar por um Brasil ainda pouco desbravado em que falta energia, água potável, hospitais e escolas para um povo invisibilizado pelo poder público. Uma população carente é uma presa fácil aos falsos profetas que se valem das palavras para propagar o preconceito, a intolerância, a misoginia, o medo, até mesmo a morte etc.
Fonte: VERUNSCHK, Micheliny. Caminhando com os mortos. São Paulo: Companhia das letras, 2023.
Sobre a autora:

Luciana Bessa Silva
Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler