O filho da costureira e do sapateiro escreve um diário aberto — não como As Veias Abertas da América Latina, de Galeano, mas próximo das pinturas de Frida, que, ao falar de si, falava do mundo. “Nunca pintei sonhos, só pintei a minha própria realidade”, dizia Frida Kahlo, temperada pelo seu tempo e pelas doses dos seus suspiros.
As realidades são distintas. Dores maiores ou menores não existem: existem dores. O filho da costureira e do sapateiro codifica em palavras espremidas as rupturas da vida; canto e grito se misturam, óleo e água se enfrentam. As borboletas se transformam em esperança em alguns momentos, porque nem tudo é tristeza.
Segundo a moça que encontramos todas as quartas-feiras, por meia hora, numa sala de meia-luz e com um sofá confortável, “existe uma solução para tudo”.
O filho da costureira e do sapateiro descreve passagens e personagens que se encontram na encruzilhada dos seus percursos. Seus medos, seus gozos e os intervalos não vividos são escritos — não cabem dentro de si.
A flor vista apenas uma vez e a água do rio, que nunca é a mesma, entranham-se nas entrelinhas. Narro fôlegos e pedidos de socorro.
Escrevo manifestos e panfletos; hora ou outra, jogo poesia no redemoinho. Sou panfletário, incendiário, dramático — menos que a vida. Escrevo para criar desordem nos pensamentos e reordenar o olhar.
Falo das folhas das árvores que estão em frente à minha varanda e falo das crianças mutiladas da Palestina, que seguram seus olhos nas mãos. Pronuncio as noites molhadas de prazer e as noites em que me embolei na impaciência no fundo da rede sem conseguir sonhar.
Junto as angústias e as indignações num balde de roupas sujas para lavar na subjetividade das palavras. Não espere um escritor bem-comportado. Gosto de escrever com os dois pés em cima da cadeira: parte da cabeça a sete palmos do chão, e a outra brincando nas nuvens.
Desesperem-se: não haverá uma linha reta, nem histórias completas. A razão e a emoção correm juntas, às vezes uma sobre a outra. Estendo um tecido de fragmentos, um quebra-cabeça que não peço para montar — faltarão peças. Por isso escrevo: porque faltam peças.
O filho da costureira e do sapateiro é o mesmo que, aos oito anos, fugia da escola e, aos doze, após a primeira comunhão, bebia cachaça escondida embaixo da pia de lavar roupa. Que provou do fogo e das queimaduras, que correu sobre o telhado quebrando as telhas, que sonhou em voar quando era criança e andou de carona nos vagões dos trens, fez castelos de terra e rochas de gesso. É o mesmo que se sentiu sozinho nas noites mais movimentadas e que viu a desnutrição da renda neste mundo capital. É o menino que amou intensamente e logo descobriu que o amor é cheio de interrupções. O filho da costureira e do sapateiro joga pedaços de sua história num caldeirão cheio de outras narrativas, mas sem se conformar com escritas pré-moldadas.
A costureira e o sapateiro têm um filho que ainda precisa de abraços para escrever outros livros.
Ando dormindo muito, tentando esquecer os monstros que me rodeiam, não sei como será amanhã, antes que seja tarde, reafirmo: o amor precisa ser declarado.
Sobre o autor:

Alexandre Lucas
Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho no Ceará, pedagogo, artista/educador, militante do Coletivo Camaradas e a integrante da Comissão Cearense do Cultura Viva.