Publicada em 1930, O Quinze representa não apenas a estreia literária de Rachel de Queiroz, mas também um marco fundamental na literatura brasileira por inaugurar uma escrita feminina com caráter crítico, social e político em plena efervescência do Modernismo de 1930. Com apenas dezenove anos, a autora cearense rompeu as barreiras impostas a mulheres escritoras e lançou um romance que aborda, com crueza e lirismo, os flagelos da seca nordestina, traçando um retrato pungente da miséria e da resistência de um povo, ao mesmo tempo em que inaugura uma representação feminina vigorosa e complexa. (Sarmento; Moura, 2023).
Conforme Tavares (2022), a autora desafia os estereótipos sociais da época ao criar personagens femininas que resistem à dominação e reivindicam autonomia, e Conceição, protagonista do romance, se torna figura emblemática dessa nova representação.
De acordo com Sarmento e Moura (2023), a importância de O Quinze no percurso biográfico e intelectual de Rachel de Queiroz é inegável. A obra, que lhe conferiu o Prêmio Graça Aranha em 1931 e causou imediata repercussão crítica, introduz uma escritora jovem, mas já madura em sua consciência política e estética. Segundo as mesmas autoras, Rachel enfrentou um campo literário ainda profundamente masculino, sendo, inclusive, alvo de suspeitas sobre a autoria de seu próprio romance devido à qualidade literária incomum para uma mulher da época. Com esse romance, Queiroz não apenas introduz o sertão nordestino no coração do modernismo brasileiro com uma perspectiva social engajada, mas também instaura uma escrita decolonial e feminista avant la lettre, inscrevendo a experiência feminina em um contexto de seca, desigualdade e opressão patriarcal.
A narrativa de O Quinze é dividida em dois eixos principais: de um lado, acompanha-se a trajetória de Conceição, mulher urbana, professora e intelectual que retorna ao sertão para visitar a avó durante uma das piores secas do Ceará; de outro, segue-se a jornada de Chico Bento e sua família, retirantes que enfrentam as consequências brutais da estiagem e tentam sobreviver à fome e à miséria. Esses dois núcleos são entrelaçados por vínculos familiares e afetivos, como o relacionamento interrompido entre Conceição e seu primo Vicente, um homem forte, solidário, mas enraizado na lógica patriarcal e nas exigências da sobrevivência rural. Conforme Tavares (2022), a recusa de Conceição ao casamento com Vicente simboliza não uma falta de sentimento, mas a escolha pela liberdade e pela autonomia feminina, o que desloca o eixo narrativo de um romance convencional para uma denúncia social que escancara a desigualdade de gênero e a violência estrutural da seca. Acerca da recusa ao casamento, a própria Conceição afirma:
Essa história de amor, absoluto e incoerente, é muito difícil de achar… eu, pelo
menos nunca o vi… o que vejo, por aí, é um instinto de aproximação muito obscuro e
tímido, a que a gente obedece conforme as conveniências… Aliás, não falo por mim…
que eu, nem esse instinto… Tenho a certeza de que nasci para viver só (Queiroz, 2012, p. 80).
Ao privilegiar as experiências de mulheres distintas, desde a resistente Conceição até Mãe Nácia, profundamente religiosa e tradicional, Rachel de Queiroz compõe um painel plural da feminilidade no sertão. A figura de Conceição, no entanto, é o eixo mais disruptivo e moderno da narrativa. Trata-se de uma mulher que, aos vinte e dois anos, recusa o casamento, vive sozinha com seu afilhado e se dedica à leitura, ao ensino e a ações sociais que envolvem retirantes, desempenhando papéis que contrastam profundamente com o modelo doméstico e submisso esperado de uma mulher da época.
Como destacam Sarmento e Moura (2023), Conceição é o símbolo de feminismo, pois sua luta por autonomia ocorre dentro de um contexto de opressão múltipla, como mulher, nordestina e intelectual em uma sociedade patriarcal e eurocêntrica. Ao romper com os padrões de gênero, ela incorpora a recusa da colonialidade do saber, do ser e do poder.
A figura de Conceição também adquire contornos autobiográficos, como observa Tavares (2022), ao apontar as correspondências entre a personagem e a vida da autora. Ambas compartilham a profissão de professora, o gosto pelos livros, a descrença religiosa e o engajamento social. Rachel, que também não era casada no momento da escrita da obra e que havia vivenciado a experiência das secas, projeta na personagem um ideal de mulher que rompe com os moldes dominantes, o que torna O Quinze não apenas um romance sobre o Nordeste e a seca, mas também sobre os modos de existência e resistência da mulher na primeira metade do século XX.
Como afirmam Sarmento e Moura (2023), Conceição rompe com os papéis sociais impostos à mulher, resistindo ao destino tradicional de esposa e mãe biológica e optando por um projeto de vida centrado na ação, na solidariedade e na cultura.
O romance, assim, articula uma crítica social contundente ao mesmo tempo em que constrói um discurso feminista. A seca aparece como metáfora de uma sociedade em crise, mas também como realidade concreta que destrói vidas e molda trajetórias. Chico Bento, símbolo do retirante nordestino, incorpora a desesperança e a luta diária pela sobrevivência; Conceição, por sua vez, simboliza a possibilidade de escolha e agência, ainda que limitada pelo contexto histórico. Como bem destacam Sarmento e Moura (2023), sua personagem rompe o silêncio das mulheres subalternas ao fazer valer sua voz e sua inteligência, demonstrando que a resistência feminina pode se dar também no plano das ideias, da recusa e da reinterpretação dos papéis sociais.
A abordagem da figura feminina em O Quinze, portanto, ultrapassa o retrato sociológico e se inscreve como gesto político e estético. A personagem de Conceição não apenas subverte os papéis tradicionais, mas redefine o espaço da mulher na literatura e na sociedade. Sua presença revela os limites da ideologia patriarcal, denunciando a submissão como construção social e reivindicando a pluralidade das experiências femininas. Como resume Tavares (2022), trata-se de uma personagem à frente de seu tempo, que representa uma virada simbólica na representação da mulher nordestina, inaugurando um novo tipo de heroína, intelectual, sensível, engajada e decidida. Ocorre que O Quinze permanece como uma obra incontornável da literatura brasileira não apenas por sua relevância estética e social, mas por introduzir uma escrita de resistência que entrelaça crítica social, representação feminina e denúncia das opressões históricas do sertão nordestino. Rachel de Queiroz, ao criar Conceição, oferece ao leitor um modelo alternativo de mulher que desafia as imposições sociais e se afirma como sujeito ativo da história.
REFERÊNCIAS
SARMENTO, E. C. D.; MOURA, G. J. B. Conceição em O Quinze: uma abordagem feminista e decolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 31(2): e85691, 2023.
QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
TAVARES, E. B. A figuração feminina no romance O Quinze de Rachel de Queiroz: uma análise sobre a personagem Conceição. Dissertação de Mestrado. João Pessoa: Universidade Estadual da Paraíba, 2022.
Sobre o autora:

Marta Kécia
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Regional do Cariri (URCA), na linha de pesquisa: Língua, Discurso e Identidades com ênfase no discurso de violência contra mulher. Especialista em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica, Metodologia do Ensino Superior e Literatura Brasileira com Graduação em Letras pela Universidade Federal de Campina Grande(UFCG).