Clarice Lispector encerrou sua carreira literária com a obra A Hora da Estrela, publicada em 1977, pouco antes de sua morte. Este romance singular não é apenas o testamento literário de uma das mais complexas autoras do século XX no Brasil, mas também uma inflexão significativa em sua produção: nele, Clarice abandona os ambientes de mulheres instruídas e melancólicas da classe média para lançar um olhar sobre a miséria social feminina, mergulhando na existência apagada de Macabéa, uma datilógrafa nordestina que vive na cidade do Rio de Janeiro. Essa virada, afirma Moser (2009), não representa um afastamento da subjetividade tão característica da autora, mas sim sua radicalização. Isso porque Macabéa, pobre, ignorante e submissa, personifica um “nada” social que, ao ser narrado com tanta força, ironia e desespero por um narrador-escritor masculino, Rodrigo S. M., denuncia todo o peso estrutural do silenciamento feminino e da exclusão social. Como observa Jucilaine Mota (2006, p. 08), Clarice constrói “uma denúncia, retratando a realidade de milhares de mulheres, que como sua personagem Macabéa, têm suas vozes veladas e abafadas pela sociedade da qual fazem parte”.
A Hora da Estrela narra a história de Macabéa, uma jovem nordestina órfã, criada por uma tia beata e cruel. Após a morte da tia, muda-se para o Rio de Janeiro, onde vive à margem da sociedade, dividindo um quarto com outras moças e trabalhando como datilógrafa em um pequeno escritório. Sua vida é pautada pela invisibilidade: feia, magra, sem instrução e sem charme, Macabéa parece incapaz de despertar qualquer interesse ou empatia. Tem como único passatempo escutar a Rádio Relógio, de onde extrai informações desconexas que repete como forma de participar do mundo que não a reconhece. Seu único relacionamento afetivo, com Olímpico de Jesus, termina de maneira humilhante quando ele a abandona por Glória, uma colega de trabalho exuberante, loira e “bem nutrida”, como sublinha Silva (2012), símbolo daquilo que a sociedade valoriza na mulher: beleza, corpo e desempenho performativo.
A narrativa se desenrola como uma escrita de urgência, marcada pelo desconforto do narrador Rodrigo S. M., que se apresenta como autor da história, mas também como alguém que hesita diante da própria capacidade de representá-la. O narrador diz, logo nas primeiras páginas, que “preciso falar dessa nordestina senão sufoco” (Lispector, 1998, p. 17), revelando uma espécie de compulsão ética e estética diante da figura apagada de Macabéa. A história, então, é menos sobre acontecimentos e mais sobre a tentativa de enunciar o inenarrável: a existência invisível de uma mulher que, até o fim, não sabe que está viva. O narrador enfatiza a insignificância social da personagem: “ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com o vestido de chita” (Lispector, 1998, p. 15), expressão carregada de ironia que revela o desprezo com que o mundo urbano lida com os corpos deslocados que nele transitam.
O confronto entre Macabéa e Glória é um dos momentos mais simbólicos da obra. Glória, loira oxigenada, filha de açougueiro e cheia de autoconfiança, representa a mulher integrada ao imaginário urbano da beleza e da eficácia. Em contraste, Macabéa é um corpo inábil, um ser quase etéreo, que “sorri na rua e ninguém responde” (Lispector, 1998, p. 16), como destaca Sirlane Silva (2012), sinalizando seu completo apagamento como sujeito social e feminino. A análise das duas personagens mostra a astúcia de Clarice em criar estereótipos contrastantes que não apenas denunciam os ideais patriarcais de feminilidade, mas escancaram sua crueldade.
Como observa Silva (2012, p. 54), Glória é “um estardalhaço de existir”, enquanto Macabéa sequer compreende o próprio sofrimento, apenas afirma: “Eu me doo o tempo todo” (Lispector, 1998, p. 62).
A linguagem do romance, profundamente metalinguística, insere o leitor em um duplo movimento: por um lado, denuncia a realidade de exclusão e miséria; por outro, expõe os limites da própria linguagem para representar essa realidade. Rodrigo S. M. oscila entre a empatia e o escárnio, o que faz da obra uma crítica não apenas à sociedade, mas também à literatura que, historicamente, silenciou corpos como o de Macabéa. A narradora-personagem feminina não tem voz plena; sua história é contada por um narrador masculino, que reconhece sua impotência em dar sentido à vida da protagonista. Ainda assim, é nesse esforço narrativo que Clarice realiza sua denúncia mais radical: a de que existem mulheres cuja dor é tão estrutural que sequer chega a ser formulada. Como escreve Lispector (1998, p. 18), Macabéa é “uma cadela vadia, teleguiada exclusivamente por si mesma”, mas esse “si mesma” é o que sobra após o esmagamento social do sujeito feminino.
A importância de A Hora da Estrela na obra de Clarice Lispector reside justamente nesse deslocamento radical. Enquanto suas personagens anteriores eram tomadas por crises existenciais diante de cotidianos burgueses, Macabéa vive o não-ser. Seu drama não é o da angústia, mas o da ausência total de consciência sobre si e sobre o mundo. Se em A paixão segundo G.H. a protagonista mergulha no abismo de sua subjetividade, em A Hora da Estrela, a protagonista sequer tem a consciência de que há um abismo. Como aponta Mota (2006, p. 08), trata-se de uma “voz feminina velada e abafada”, que não consegue se projetar em um mundo que exige performance, aparência e eficiência para conceder reconhecimento social.
Ao final do romance, Macabéa visita uma cartomante, Madame Carlota, que lhe prevê um futuro brilhante: amor, riqueza, sucesso. Saindo da consulta com um tênue vislumbre de esperança, é atropelada por um Mercedes-Benz e morre. O gesto trágico e irônico sela a crítica da autora: mesmo quando o sistema promete algo àqueles à margem, o faz de modo farsesco e destrutivo. A morte de Macabéa não é apenas a de uma personagem, mas o ponto de interrogação diante de uma sociedade que transforma vidas inteiras em silêncio estatístico.
Clarice Lispector entrega com A Hora da Estrela uma obra crua, dura e essencial para pensar não só a literatura brasileira, mas também a condição feminina subalterna e nordestina no imaginário nacional. Em Macabéa, não encontramos apenas uma figura feminina entre tantas: encontramos a metáfora viva das mulheres invisibilizadas. Clarice nos obriga, com essa obra, a olhar para elas. E, mais que isso, a escutá-las.
REFERÊNCIAS
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.
MOTA, J. O. Um mergulho no feminino na obra A Hora da Estrela de Clarice Lispector. Dissertação de Mestrado.Brasília: UnB, 2006.
SILVA, S. S. A representação social da mulher em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector: Um olhar sobre Macabéa. Dissertação de Mestrado. Jacobina: Universidade do Estado da Bahia, 2012.
Sobre o autora:

Marta Kécia
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Regional do Cariri (URCA), na linha de pesquisa: Língua, Discurso e Identidades com ênfase no discurso de violência contra mulher. Especialista em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica, Metodologia do Ensino Superior e Literatura Brasileira com Graduação em Letras pela Universidade Federal de Campina Grande(UFCG).