Coração na aldeia, pés no mundo

Lançado em 2018 pela editora UK’A, Coração na aldeia, pés no mundo, da escritora cearense indígena Auritha Tabajara, é uma obra autobiográfica cantada em versos. Contudo, quando a autora traz à tona memórias, percepções e experiências de sua própria vida, ela possibilita que outras mulheres indígenas possam (re)pensar sua própria trajetória. 

Sua primeira obra data de 2004, Magistério indígena em versos e poesia, adotada pela Secretaria de Educação do Estado. Em 2020, publicou o folheto Tabajara, toda luta, história e tradição de um povo.

A escrita em rimas sempre foi uma das formas que Auritha encontrou para se posicionar no mundo. O cordel é o seu “grito de resistência” para aplacar “suas dores” e as “dores de outras mulheres indígenas” também silenciadas ao longo da história.

Coração na aldeia, pés no mundo (2012) traz xilogravuras da artista multifacetada, Regina Drozina. Neste sentido, o leitor pode ler a obra duplamente: pela palavra e pela imagem. Por isso, é importante entender que as imagens não estão na obra meramente para ilustrá-la ou embelezá-la.

Formada por setenta estrofes, Coração na aldeia, pés no mundo (2012), poderia ser dividido em três momentos: no primeiro, a narradora pede à “Mãe Natureza” inspiração para que possa contar sua história “Com tamanha emoção” (p. 6). Diferentemente das princesas dos reinos encantados dos filmes estrangeiros, Auritha é uma princesa “Nascida lá no sertão” (p.6). Como a maioria das pessoas não estão acostumadas em pensar em princesas do Nordeste, uma região marcada por estereótipos e preconceitos, ela espera que o leitor mude de opinião. Em seguida, a narradora fala de seu nascimento, sua relação com a avó “boa parteira / Contadora de histórias; / Também grande mezinheira” (p.8), quem lhe deu o nome de “Auritha”, que vem de “Aryreí”, aquela que está a vir (p. 9). No entanto, no momento de registrar, precisou seguir a modernidade e foi chamada de Francisca, já que para sociedade “Fêmea tem nome de santa / Padroeira da cidade” (p. 9).

É importante frisar que somente em 2024 foi aprovada uma Resolução conjunta nº12/2024, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que garante aos povos originários o direito de registrar seus nomes e sobrenomes de acordo com suas tradições e sua língua.  Estamos diante de um exemplo clássico de comprometimento, enfraquecimento da identidade e dos valores da cultura indígena.

No segundo momento da narrativa, Auritha, depois de crescer, aprender a conversar com os espíritos, “a ler na rima” (p. 10), sofrer bullying na escola, resolve sair de casa “Pra conhecer a cidade” (p. 12). Eis que encontra “onça pintada”, “breu da noite fria” (p. 13), mas chega no destino esperado. Passou dificuldades sem nada para comer, conheceu homem que recitou “poemas de amor” e “Ofereceu-lhe uma flor!” (p.18), seguido de proposta para ser cuidadora da mãe dele. Fugiu e acabou em Fortaleza como “doméstica / Na capital do estado!” (p. 22). Infelizmente é uma prática comum o indígena na condição de empregado (a) doméstico (a). Não é à toa que o trabalho escravo tem aumentado no país e muitas pessoas ao serem resgatadas têm se identificado como indígenas.

O terceiro momento marca o retorno de Auritha para sua aldeia, “Querendo apagar as dores / Espinhos do seu tormento; / Buscando sabedoria / E novo conhecimento” (p. 25). Nesta nova fase, conheceu “Um moço recém-chegado” e um desfecho precipitado ocorreu: casamento. Com ele teve quatro filhos, dois morreram, mas “Criar duas meninas / Foi sua grande paixão” (p. 25).  Não suportando a dor de ser quem não se é, Auritha conta para sua avó seu segredo: “Não gostava de meninos, / E não sabia lidar” (p. 27). Ser mulher, indígena e lésbica vai na contramão da nossa sociedade, talvez, por isso, Auritha conceba a literatura como uma forma de “auto expressão” e de “resistência”

Auritha, “Sempre disposta a voar / Em busca do que é seu” (p. 28), “Fez magistério indígena” (p. 27), escreveu cordéis e os publicou, além de alfabetizar crianças e adultos de sua comunidade para que seu povo pudesse ter conhecimento para lutar por seus direitos. No entanto, não suportando permanecer no papel de mulher casada, resolve ir sozinha para São Paulo em busca de parentes. O companheiro rejeitado denunciou-a no conselho tutelar por largar “Duas crianças pequenas” (p. 30). Depois de muitas noites angustiantes, Auritha conseguiu assumir suas raízes e passou a se valer da literatura para falar da sua cultura, “Riqueza de uma nação” (p. 39).

A leitura de Coração na aldeia, pés no mundo (2012) permite ao leitor entrar em contato com experiências ora boas, ora doridas de uma mulher que não se permite ser julgada pela régua de uma sociedade racista, misógina e preconceituosa.

Sobre a autora:

Luciana Bessa Silva

Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler

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