Relatar o cotidiano, as inquietações, as dores e os prazeres da vida são feitos que exigem confiança em seu interlocutor. Este pode se manifestar de diferentes formas: melhores amigos, parentes, professores. Aos mais introspectivos, eu diria que os cadernos e diários desempenham, com primazia, essa função. No entanto, a manutenção de diários, embora seja uma atividade intimista, se configura também como um registro social, que, se levado a público, torna-se objeto de estudo do tempo e sociedade de quem o escreve.
Na literatura encontramos alguns exemplos, como os diários de Virginia Woolf e Sylvia Plath, que relatam os dilemas existenciais enfrentados por ambas as escritoras, bem como a condição da mulher em suas respectivas épocas. Em 1947, foi publicado O Diário de Anne Frank, que narra a aflição de uma adolescente que teve a família perseguida por soldados nazistas durante a II Guerra Mundial. A britânica Anne Lister, ficou conhecida por seu diário escrito em códigos, onde ela registrava os detalhes da vida cotidiana, seus amores proibidos e suas preocupações financeiras, uma mulher, que no século XVIII, se colocou contra as normas de comportamento impostas ao seu gênero. Em 1960, Carolina Maria de Jesus tornou-se uma das primeiras e mais importantes autoras negras do Brasil com a publicação de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, com seus relatos de vivência numa favela, em São Paulo.
Nascida em Sacramento, Minas Gerais, em 14 de março de 1914, Carolina Maria de Jesus é oriunda de uma família pobre, fruto de um relacionamento fora do casamento, desde cedo muito maltratada pela vida. Aos sete anos começou a frequentar a escola, onde aprendeu a ler e escrever, e permaneceu até o segundo ano. Quando sua mãe morreu, em 1937, mudou-se para a capital paulista, onde trabalhou como empregada, até engravidar pela primeira vez, quando passou a viver de catar papel na favela do Canindé.
Mãe solo de três filhos, cada um de um homem diferente, optou por nunca casar Mesmo discriminada por suas vizinhas — “Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar. Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens” — para Carolina Maria de Jesus, um marido seria mais um problema em sua vida, que já tinha coisa demais com o que se preocupar — “Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas”.
Foram a leitura e escrita que salvaram Carolina Maria de Jesus da miséria a qual estava inserida, tanto em termos de enfrentamento — “Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo” — quanto em termos financeiros. Quando o jornalista Audálio Dantas foi à favela de Canindé fazer uma matéria sobre o lugar, encontrou, nos cadernos de Carolina, todas as informações que precisava, e, impressionado, ajudou a publicar aquela autora improvável.
Com a publicação de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada ao redor do mundo (foi traduzido para 14 idiomas diferentes), Carolina Maria de Jesus mudou-se para a Zona Leste de São Paulo, em seguida para o subúrbio da Zona Sul, um espaço que escancara o contraste social entre seus moradores — “É triste a condição do pobre na terra (…) Rico vai na frente, pobre vai atrás”.
Autora de Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-favelada (1961); Pedaços de Fome (1963); Provérbios (1963), Carolina Maria de Jesus foi compositora e poetisa, hoje é referência para mulheres negras em todo o Brasil, um exemplo de força, resiliência e do poder transformador da escrita e leitura.
Sobre a autora:
Shirley Pinheiro
Graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri.