Luciana Bessa
Maria Firmina dos Reis, mulher negra, acanhada, de compleição débil, autodidata, se autorretratava como uma “criatura frágil, tímida, e por consequência, melancólica”, que recebeu uma espécie de educação freirática. Enveredou pela poesia, pela música, pelo conto, romance e pela crônica.
Nascida em 11 de março de 1822, Maria Firmina dos Reis foi uma dessas mulheres que desabrochou para guerrear com e pela vida. Filha de Leonor Felipa dos Reis e João Pedro Esteves, a autora de “Canto de recordação” foi criada pela tia em virtude das condições sub-humanas em que vivia com sua genitora. Cedo conheceu o céu, as estrelas e as flores, que se tornaram seus únicos grandes amores, afinal, acreditava que amar era tão “necessário ao coração do homem, quanto o ar é necessário à vida”. Aprendeu a ler e a escrever e descobriu que poderia sair da caverna de Platão.
Pela escrita Firmina pôde falar de si, sobretudo dar voz a personagens como Suzana, Túlio e Antero, em seu romance “Úrsula” (1859), considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro de autoria feminina. Da própria boca de mãe Suzana, ouvimos sua triste trajetória: foi arrancada de sua terra (África), separada de seu marido, de seus filhos e jogada em um navio negreiro, onde “presenciou as mais terríveis desumanidades”. A postura antiescravista perpassou a obra dessa maranhense, cujas lágrimas foram suas companheiras de uma “árdua e penosa existência” – “Gupeva” (1861), “Cantos à beira-mar” (1871), “A escrava” (1887), “Hino de Libertação dos Escravos” (1888) – mesmo com todas as dificuldades impostas a uma mulher e negra de seu tempo.
Sabendo de sua posição social no século XIX, Firmina declara no prólogo de “Úrsula” (1859): “Pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados”. O descrédito à literatura produzida por mulheres no passado (e ainda hoje) era uma estratégia para abafar a voz feminina e legitimar a voz masculina como a única representante de uma elite cultural. Não é à toa que o cânone literário é composto primordialmente de homens brancos, heterossexuais e abastados.
É verdade que a heroína é branca, mas o que mais chama atenção é uma tríade de personagens negras. Firmina adornou um típico enredo romântico de considerações e análises sociais sob a perspectiva do feminino e do negro. Sua voz sensível, poética e crítica é capaz de fazer o leitor querer escutá-la e propagá-la.
Seu pioneirismo foi além da arte literária: foi a primeira mulher a ser aprovada para o cargo de professora de primário e fundou a primeira sala de aula gratuita e mista, em Maçaricó, próximo de Guimarães.
Ler Maria Firmina dos Reis é entrar em contato com a história de uma mulher que, em pleno século XIX, desafiou todas as convenções sociais e interferiu em uma sociedade patriarcal valendo-se de um discurso romântico, humanista e cristão, especialmente, crítico que procurou sensibilizar o leitor para as feridas da vida.
Sobre a autora:
Luciana Bessa Silva
Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler