Ser mulher-escritora e não nascer e/ou frequentar o eixo Sul-Sudeste pressupõe que sua obra fique em um dos últimos lugares no cânone literário brasileiro. Foi isso o que aconteceu com várias beletristas nordestinas, dentre elas, destaque para Natércia Campos, filha de um dos maiores contistas do século XX, o escritor Moreira Campos, autor de Dizem que os cães veem coisas (1987), considerada pela crítica especializada sua obra prima.
Na infância, Natércia adorava escutar histórias dos irmãos Grimm, Andersen e Perrault. Na adolescência, transformou-se em uma leitora voraz de Câmara Cascudo, seu mestre, Monteiro Lobato, Jorge Medauar, Gabriel Garcia Márquez e, claro, do próprio pai, que adorava escutá-la falar sobre suas leituras. Foi em um desses momentos de escuta, que o pai lhe teria dito: Natércia, “Você é uma contadora de histórias”.
Somente na década de 80, a Natércia leitora cedeu espaço para a Natércia escritora. Seu primeiro conto publicado chamava-se “A Escada” (1987), que traz à tona a história de uma personagem oprimida pela presença de uma mulher (Morte), que ninguém em sua casa era capaz de vê-la, apenas ela, que enxergava não com os olhos, mas com as sensações dentro de si. O tom de angústia é a tônica do conto, cuja personagem precisava se “libertar da escuridão que a envolvia”, mas para alcançar a claridade só era possível “através da escada”. No entanto, seu temor era encontrar essa luz libertadora.
O texto foi o ganhador do primeiro lugar no 2º Concurso Literário Sudameris, da Academia Botucatuense de Letras. Esse conto, posteriormente, foi publicado na Coletânea Quem Conta um Conto, na Revista de Letras, v.1 e no Almanaque de Contos Cearense.
No ano de 1988, conhecemos sua primeira obra, uma coletânea de quinze contos, Iluminuras (inclusive A Escada), ganhador do segundo lugar na 4ª Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, com grande repercussão no Rio de Janeiro e em São Paulo. São textos em que as personagens, marcadas por crenças e superstições, vivem entre a cultura do Nordeste e a cultura Ibérica.
Nascida em 30 de setembro do ano de 1938, em terras alencarinas, Natércia Campos, contista, cronista e romancista, sentia a brisa do mar da Praia de Iracema e pensava como seria o cheiro de terra molhada do sertão. Talvez por isso tenha construído A Casa (1999), obra vencedora do prêmio Osmundo Pontes, e dado a ela voz para que pudesse compartilhar com o leitor desde o seu nascimento – “Fui feita com esmero…”, até sua morte – “A casa irá para o fundo das águas”.
A um só tempo, A Casa assume a condição de espaço, narradora e personagem, que fala de si e dos moradores que a habitam. As relações familiares dessa obra são marcadas por feridas e silenciamentos na vã tentativa de “apagar” manchas, ou simplesmente, porque os envolvidos não sabem lidar com situações conflitantes, como é o caso de Custódio, que causou tantas dores à sua mãe no período da gestação, que “no momento sagrado do nascimento ela amaldiçoou aquele filho”.
Estamos diante de um romance com tom de regionalidade em que a força da terra concebe personagens que trazem em si dores e solidão. Além de A Casa (1999), frutos de suas andanças, surgiram outras obras: O Jardim (1990), Por Terras de Camões e Cervantes (1998), Noite das Fogueiras (1998) e Caminho das Águas (2001). Viajar e contar histórias foi para Natércia Campos sua forma de se comunicar com o mundo.
Integrante da Sociedade Amigas do Livro, ocupante da cadeira número 6, cujo patrono é Antônio Pompeu de Sousa Brasil, da Academia Cearense de Letras, Natércia Campos, aos 65 anos de idade, vítima de câncer, faleceu no 2 de junho de 2004. A força telúrica de Natércia continua pungente no sertão que ela não conheceu, mas amou/eternizou.
Sobre a autora:
Luciana Bessa Silva
Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler