Como é ser mulher hoje?

Ludimilla Barreira

Vou falar por mim. Talvez algumas pessoas se identifiquem, pois são circunstâncias semelhantes, algumas agravadas por diversas situações, principalmente a cor da pele ou a condição econômica, somando-se à falta de esclarecimento ou ao próprio reconhecimento de si como indivíduo de direitos.

Honestamente, para mim, que estou em uma situação de privilégio socioeconômico, de mulher hetero, branca, casada e com emprego estável, aparentemente chegamos a um momento em que nem precisamos mais lutar por direitos. Sob uma análise rápida, consegui alcançar muito do que estava na pauta feminista no início do século XX. Apesar de ter direito ao voto, um emprego com salário equânime (pelo menos na teoria), leis que me protegem da violência, além da certeza e do poder de saber como usá-las, e ter um parceiro que respeita minhas decisões reprodutivas e não me sufoca com seu ego, não é fácil carregar o peso de ser mulher.

Começou na infância, quando precisei aprender a ser uma pessoa compreensiva, o que, para mim, hoje em dia, funciona como um absurdo vocabular, impronunciável. Pois, quando se aprende a ser assim, tão boazinha, dócil e domesticada, automaticamente vem o massacre dos seus sonhos e desejos, que são soterrados pelas necessidades alheias. Ou seja, tudo importa, menos você. Até desaprender e reverter essa situação, você já caminhou dois quartos da vida.

Vem a adolescência. Você precisa ser escolhida, mostrar que tem algo de especial, quase místico, na sua persona, para provar na sua pequena bolha o seu inestimável valor. Parece uma época que não tem fim. Todas as tragédias são acentuadas, principalmente quando esse valor é frequentemente questionado por todos.

Não pretendo me prolongar na sessão das cobranças, você precisa ser bonita, ou seja, se encaixar em algum padrão impossível e determinado (odeio a palavra padrão), não deve envelhecer (não sei como as pessoas acham que podem evitar o processo natural da velhice), pois não há charme ou beleza para a mulher que “passou do prazo”, ter uma saúde esplendida, afinal, não se pode perder tempo cuidando de doença ou automaticamente te colocam na categoria “pobre coitada digna de pena”, ou a “bichinha”. Triste.

Mesmo sendo uma adulta ativa, é normal ser invisibilizada quando estou ao lado do meu companheiro, ou até sozinha, as pessoas não me cumprimentam, ou quando o fazem é para saber dele. Além da esfera matrimonial, há o profissional, por desempenhar uma profissão que no imaginário das pessoas é de perfil masculino, sempre sou questionada se não há um homem para realizar o meu trabalho, quando não preciso ser referendada em todas as minhas ações para que tenham certeza da minha resposta não ser apenas um devaneio de uma cabeça feminina sem juízo.

Além de tudo isso, e de não ser um fardo para o contribuinte, pois cuido da minha própria previdência, sou constantemente cobrada pela não execução da minha obrigação reprodutiva. Para que mais eu poderia servir?

Mesmo diante de tudo que já passei, sei que isso não é nada comparado à situação de tantas mulheres que sequer têm o direito de viver. Elas apenas sobrevivem com as migalhas de uma sociedade, seja de homens ou mulheres, que se veem no centro e não dão a mínima para quem está à margem.

Além de todas as minhas dificuldades, a maioria das mulheres, cidadãs, sujeitos de direitos, possuem inúmeras violências sobrepostas a todas essas. São seres humanos que, na maioria dos casos, nascem diante da desarmonia marital, experimentando a brutalidade da vida sem sequer imaginar a possibilidade de aquilo ser diferente, pois elas se enxergam muitas vezes como culpadas dos seus infortúnios e responsáveis pelas desgraças que as acompanham. Depois de vivenciar uma infância cercada de violências, acredita que não há outra forma de viver, reproduzindo o mesmo comportamento que prendeu como sendo o correto.

Mas, talvez você questione que nem sempre as pessoas encontram violência em casa, eu já esperava. Porém, há inúmeras outras razões para ocupar um lugar de vulnerabilidade, que significa estar exposta a abusos, danos e perigos. Elas podem ocorrer por ausência de recursos financeiros ou afetivos, fragilidade, podendo ser física, emocional ou social, ou outras condições que causem prejuízos ao seu desenvolvimento humano.

Pessoas com teto e desatentas às vulnerabilidades, geralmente, questionam aqueles que sobrevivem nas ruas, a justificativa mais encontrada na boca de quem dorme em uma cama macia é dizer que por pura preguiça a vida não muda. É bom lembrar que vivemos na sociedade da performance e da validação. Por isso, quem não se apropria dos meios para atingir o lugar, está relegado a ocupar o não-lugar, tornando-se abjeto. E, esses meios, são escassos, ou seria muito fácil para qualquer um ter a fortuna do Elon Musk. Porém, são infindáveis as perdas de quem fica em uma condição extrema, e quem justifica essa situação de forma tão simplista, nunca experimentou ou refletiu sobre o lugar de quem vivencia a segregação. São infinitos processos com a culminância de muitas respostas negativas, até se perderem, e se torna impossível a busca ou a identificação de um lugar que possa ser ocupado.

Por fim, respondendo à pergunta de Heleieth Saffioti, no livro Gênero Patriarcado Violência, ser mulher é carregar o peso das escolhas dos outros, pois nós mesmas nunca fomos redatoras das possibilidades que nos oferecem. Porquanto, mesmo ao acreditarmos que temos/tivemos esse poder, foi apenas uma permissão, um sopro de ilusão dado pela sociedade (não apenas pelos homens, também somos responsáveis), para acreditarmos que estamos/estivemos no controle das nossas vidas. Logo, a partir do momento em que você tentar fazer uma escolha fora das possibilidades pré-determinadas, reavivará a fogueira da opinião pública que está pronta para queimar qualquer chance de se tentar fazer diferente.

Fica o questionamento: Como é ser homem hoje?

Sobre a autora:

Ludimilla Barreira

Leitora, sonhadora, eterna estudante e observadora da vida. Além disso, é bacharel em Direito, especialista em Direito Público, servidora do executivo estadual e defensora da igualdade.

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