Ludimilla Barreira
Enquanto assistia Bia Sousa ganhar a medalha de ouro nas Olimpíadas de 2024, refletia sobre o que seria um corpo de atleta, uma vez que ela não se encaixa no dito corpo padrão que exigem de todas nós. Nem preciso me prolongar nessa descrição, todos sabem do que se trata. Mesmo assim, Bia encontrou seu lugar, apresenta uma alta performance e conquistou o nosso primeiro ouro nos Jogos de Paris 2024.
Em seguida, soube de toda a polêmica envolvendo a lutadora argelina Imane Khelif e tive o desprazer de ler parte do ódio destinado a ela pelas redes sociais, com a insistência em questionarem seu gênero. Tudo isso por causa de um teste hormonal ao qual ela foi submetida, com um método de testagem confidencial e que clinicamente não é o mais indicado, conforme o Comitê Olímpico Internacional (COI).
Deixo claro que estas palavras não são sobre as Olimpíadas nem sobre esportes, mas sobre o quanto estamos, no coletivo e individualmente, condicionados a pejorar o que está relacionado ao feminino. Digo isso com propriedade, pois tenho nítido na mente o primeiro momento em que neguei a mim mesma e comecei a encontrar defeitos em tudo relacionado ao meu próprio corpo.
Eu era uma criança, estava esperando a minha mãe me pegar na escola, devia cursar alguma série anterior à antiga Alfabetização, acho que tinha uns quatro anos. Na portaria, havia alguns lugares para as crianças esperarem os pais sentados, aproveitando a sombra de frondosas árvores. Era um espaço muito agradável, com muita luz. Sempre fui muito avessa à claridade. Coloquei a minha mão bloqueando o sol e mirei nos meus dedos. Senti um enorme incômodo com o que estava vendo.
Baixei as mãos e analisei todas as linhas da minha pele, a largura dos dedos e a junção grosseira entre as falanges. Achei tudo feio e grotesco. Era muito diferente da menina sentada ao meu lado. Ela tinha as mãos com um tom branco rosado, dedos finos e delicados. Eu estava bronzeada e tinha uma pele áspera na palma da mão, característica marcante até hoje, mas menos importante agora. Por muito tempo achei que minhas mãos eram grandes e másculas, as unhas eram largas e curtas, ou seja, não eram delicadas e pequenas como as de uma menina. Mas, eu era apenas uma menina.
Na minha memória carrego com nitidez esse momento. Não lembro de vários recreios felizes brincando no jardim florido, são apenas uma certeza, pois eu amava aquele lugar e o achava lindo, mas da vergonha que me fez puxá-las para esconder nos bolsos da farda, recordo com clareza. Possivelmente, nem sabia ler ou escrever, mas ainda arrasto essa sensação de desconforto com as minhas mãos, além de outras partes. Já me descontentei com o todo também, mas deixarei esse fio me conduzir para outras tramas.
Demorei muito a ter segurança para mostrá-las. Para entender que mesmo com mãos grandes e graves, eu ainda poderia era uma menina como as outras. As mãos foram o começo, encontrei defeito nos pés número quarenta aos quatorze, cabelos muito lisos e com pouco volume, silhueta sem cinturada marcada, uma lista sem fim. Eu não entendia que era igual mesmo sendo diferente. Era apenas uma parte do meu corpo que desempenhava bem todas as suas funções. Ainda hoje, me escondo involuntariamente nas roupas, fotos e de lugares que me coloquem em destaque.
É uma luta constante. Sofremos para fugir da violência impetrada por outras pessoas contra os nossos corpos, mas nos impomos uma autocrítica destrutiva para conquistar um prêmio invisível. É um crime perfeito. Ninguém encontra o culpado, mas identifica facilmente a vítima. Todas nós. Cada uma com a sua relação de imperfeições.
Afinal, que patamar de segurança precisamos atingir para sairmos ilesas?
Qual treino precisamos seguir para receber a medalha da aceitação?
Até Simone Biles, uma das maiores medalhistas olímpicas em Paris 2024, recebeu críticas por algum atributo físico. Assisti a matérias que explicavam os motivos de uma ginasta ter uma estatura menor, como se fosse necessário justificar que, mesmo perfeitas, elas têm o “defeito” de não se enquadrarem no tão exigido padrão.
Trouxe essas mulheres que se dedicaram incansavelmente para conquistar o destaque do pódio e, referências nos papéis que desempenham, mesmo assim sofrem ou sofreram por não alcançar esse índice de perfeição imaginária. Que alguém deduziu que existe, mas nem esse indivíduo conseguiu alcançar. Com estas palavras, tento me conscientizar de que, emancipada do conceito de imperfeição que usei para julgar a mim e as outras, sempre haverá um lugar onde eu poderei me sentar e, sob a luz de um sol radiante e a sombra de árvores frondosas, enxergar a beleza da vida apenas com as minhas próprias lentes. Talvez, um dia.
Um abraço apertado para a Ludimilla de 1988.
Sobre a autora:
Ludimilla Barreira
Leitora, sonhadora, eterna estudante e observadora da vida. Além disso, é bacharel em Direito, especialista em Direito Público, servidora do executivo estadual e defensora da igualdade.