A mulher com olhos de fogo – o despertar feminista

Ludimilla Barreira

Paralisada. Esse é o meu estado sempre que penso em Firdaus, a protagonista do romance A mulher com olhos de fogo – o despertar feminista, escrito por Nawal El Saadawi. Tento escrever sobre essa mulher há algum tempo; nem sei precisar quanto, pois, se contar as vezes em que já olhei para o livro e pensei sobre o que eu poderia escrever, as outras em que estive com a folha em branco na minha frente e o tempo em que escrevo e apago, pois nada faz jus à realidade que ela descreve, são muitas horas, muito mais do que o tempo em que me detive ao ato de ler.

A biografia da autora, Nawal El Saadawi, já seria o suficiente para dedicar uma infinidade de caracteres. Ela nos mostra a necessidade da sua atuação e resistência em um país que ainda hoje é um dos piores do mundo árabe para uma mulher viver, considerando que ações fundamentas em uma cultura machista são socialmente valorizadas.

Além das experiências avassaladoras da escritora, às quais esteve exposta, iniciando pela mutilação genital, ocorrida enquanto ela ainda tinha seis anos de idade, até o momento em que teve a privação de sua liberdade na Prisão Feminina de Qanatir, por aproximadamente três meses, acusada de “crimes contra o Estado”, em resposta às suas críticas sociais e políticas. Ela foi uma ativista feminista e médica psiquiátrica que, através de sua escrita, fundamentou pautas feministas em seu próprio país e no mundo árabe.

Sabendo das experiências de luta dessa mulher chamada de “A Simone de Beauvoir do mundo árabe” pela agência Reuters, e do contexto em que ela estava, alguns aspectos ganham novo sentido quando me detenho na figura de Firdaus, sua personagem, desta ficção baseada em um relato verídico. O detalhe mais marcante, diante da minha perspectiva, talvez por ser a experiência mais alheia à minha realidade como mulher, foi a mutilação genital. Pois, sem alarde, ela nos diz: “Elas cortaram um pedaço de carne no meio das minhas pernas”, fazendo alusão à sua mãe e a uma mulher estranha que apareceu em sua casa com algo que parecia uma navalha.

Mesmo que parecesse algo que foi retirado do corpo e apenas um trauma do passado, ela nos faz perceber que a amputação desse “pedaço de carne” reverbera por toda a sua vida, mostrando que a ausência é mais dolorosa do que o momento da subtração: “Eu podia sentir isso em algum lugar, como uma parte do meu ser que havia nascido comigo na data do meu nascimento, mas não havia crescido comigo durante o meu crescimento”.

Além dessa violência, outras tantas foram retratadas, do início ao fim da história. Infelizmente, elas não são alheias para nós, independente de vivermos no Ocidente ou Oriente. O acesso irrestrito ao corpo de uma mulher, sendo ou não consentido, na maior parte das vezes não é, parece que é ensinado à maioria dos homens em uma disciplina especial na escola.

Para além das ações, algo que Firdaus nos faz perceber, é que o mundo não está preparado para as mulheres que têm coragem para expor a “face da feia realidade” dos homens que “dotados de voz de comando e capacidade de persuasão”, podem nos acolher com a doçura de suas falas enquanto arrancam de nós a liberdade.

Por fim, da mesma forma que Firdaus ecoou em Nawal El Saadawi, as duas vibram em mim, mesmo quando estou com os olhos fechados. Não paro de pensar o quando ambas, dentro de suas possibilidades, foram corajosas para enfrentar todos os terrores possíveis na vida de uma mulher. Parafraseando a escritora, ao final percebi que as duas têm mais coragem do que eu.

Sobre a autora:

Ludimilla Barreira

Leitora, sonhadora, eterna estudante e observadora da vida. Além disso, é bacharel em Direito, especialista em Direito Público, servidora do executivo estadual e defensora da igualdade.

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