Coleciono arrependimentos

Dina Melo

Faço coleção de arrependimentos, poderia colocá-los todos enfileirados, por ordem cronológica, tamanhos, cores, tipos, densidades.

Penso agora em paredes onde poderia pendurá-los, emoldurados. Talvez uma galeria sem ordem nenhuma, já que estão todos emaranhados no tecido do meu corpo, uns dando vida aos outros.

Seriam eles as obras de arte do meu talento reverso?

Tenho arrependimentos que, a seu tempo, emitiram faíscas brandas, resultados de gestos e palavras soltas no cotidiano, dos quais me envergonhei, mas que foram jogados no porão das quinquilharias, abandonados para serem encobertos pelo pó da desimportância.

Guardo também aqueles que vieram após ações que julguei erradas ou que, ainda que eu pensasse serem acertadas, resvalaram em consequências inesperadas e pesarosas. Muitas destas ações das quais me arrependo e seus efeitos moldaram o rumo da minha vida. 

Estes são os arrependimentos maiores, os mais densos, cujas cores são mais fortes, dos quais me lembro com uma intensidade que não me deixa descansar, que sufocam meu coração fustigado, que reavivam as brasas que em vão sopro para apagar, que ardem minhas mãos feridas, que fazem jorrar sangue dos meus olhos e vertem lágrimas da minha pele.  

São como vermes insistentes, apontando meus erros, meus fracassos, minhas infâmias. Eles se espalham e penetram nos ocos da minha memória. Onde não há nada, eles ocupam os espaços, torcem minhas entranhas e não me deixam escapar.

Tantos desacertos que beiram o absurdo. Penso se há vidas com menos enganos, mais retas, mais lisas, como aqueles rios que correm pro mar sem atropelos. Há vidas com menos desvios? Será que só a minha – e as de outros infelizes, que sempre há – que tombaram antes da vitória? Que não receberam os sorrisos de aprovação, as condecorações honrosas?

Estou atrasada, sempre atrasada, tonta de um lado para o outro, procurando pregos, tábuas e tintas para consertar meus desatinos, ansiosamente lutando para dar conta de tudo o que ficou ao longo dos anos pelo caminho, mastigando angústias ao tentar remendar o passado. 

Nessa busca apressada e extenuante, articulo palavras que combinam para despertar olhares de confirmação, desejosa de um lampejo, ainda que ínfimo, de reconhecimento. Corro tão ávida que minha respiração fica ofegante, meu corpo pesa e então rastejo, renunciando aos confortos presentes, em troca das promessas do futuro.

Tantas tolices que poderiam ter sido evitadas. Mas como? Julgo-me com o rigor do presente, testemunho meus lapsos irrefletidos, assino sentenças de prisão e açoite. Se ao olhar para trás eu me transformasse em estátua de sal, me pouparia das tão severas penas a que me imponho.

Não sei se estou condenada ao submundo, permanentemente atada às consequências dos meus atos, eternamente dilacerada pelo martírio das possibilidades irrealizadas ou se conseguirei, afinal, atinar com a máquina de curar arrependimentos. Enquanto não obtenho respostas, sigo, acrobata trêmula, tentando borrar as lembranças doloridas do passado, para equilibrar-me nos intrincados fios da vida. 

Sobre a autora:

Dina Melo

Amante das árvores, das nuvens, do vento, das águas e do som das palavras. Pés no chão, cabeça nas estrelas, sol em Touro e lua em Gêmeos. Herdou a força e a ligação com a Terra das suas ancestrais Tabajaras da Serra da Ibiapaba. Estudou Direito na UFC e é servidora do TRT Ceará.

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