Eu vi São Paulo

Emílio já se encontrava radicado na terra da garoa. Uma cidade que acolhe, mas exige grandes desafios. Só quem percorreu esse caminho consegue imaginar o que se passa na cabeça da gente. Eu vim a São Paulo. Vim porque alguns familiares vieram e não voltaram mais. Vim em busca do sonho de conseguir um trabalho e saber como é a vida na cidade grande.

Meu primo migrou no ano de 1970 e teve sorte. Nas cartas para a família dizia trabalhar numa empresa multinacional. Emílio era um menino estudado. O meu tio queria que ele se formasse em medicina ou direito e investiu suas economias para o filho estudar em Fortaleza. Chegando na capital, ele enveredou pelo rock and roll, juntou-se a uma turma de artistas intelectuais e, de lá, veio pra São Paulo.

Fomos criados juntos, mas cada um com suas preferências. Ele sempre firme nas suas convicções, até se apresentou na TV. Fiquei na roça, mas também manjava quando a música era boa. Minha vitrola era o meu passatempo preferido. Eu trabalhava com meu pai e meu tio. Eles caprichavam no cultivo de suas terras, além do feijão e do milho, plantavam cana, mamona e fumo. Gostava do serviço na lavoura. Mas quando não chove no chão, a coisa fica feia.

Resolvi também dar no pé. Janeiro de 1975. Eu vi São Paulo. O motorista do ônibus teve que parar duas vezes para consertar o “prego”. Atrasamos bastante na viagem. Chegamos quase meia-noite. E já deu pra ver o ritmo frenético próprio da cidade grande. Após alguns minutos de hesitação e de espanto, chamei um táxi. O taxista, querendo ser simpático, emendava uma conversa atrás da outra. Notou o meu sotaque e lançou:

— Você vem do Norte?

Eu me sentia perdido no meio daquele formigueiro humano, não estava disposto a explicar que o Norte é uma região do Brasil, o Nordeste é outra. E a região Nordeste tem nove estados, antes que me chamasse de baiano. Nada contra os baianos, mas pela fala do taxista, todo nordestino era baiano.

— Venho do Ceará — respondi.

Saí do Terminal Rodoviário da Luz para Congonhas, onde Emílio morava. Conferi o endereço. Era uma casa branca, muro baixo, um pequeno jardim e no fundo do quintal tinha um quartinho… Chamei no portão e bati palmas, pois não tinha campainha. E lá de dentro ninguém respondia. Fiquei um tempão parado. Chamei de novo e de novo.

E se meu primo não recebeu minha carta? Bem que papai me alertou, seria mais garantido se avisasse por telegrama também. Não! Não vou me apavorar — Pensei. Olhei em volta. A rua quase toda dormia com exceção de uma lanchonete/bar numa esquina perto dali. E agora? Calculei a minha chegada para o meio da semana, conforme as informações passadas por Emílio. Ele não mudaria de endereço em tão pouco tempo sem avisar aos parentes.

Arrastei minha mala de viagem modelo antigo e pulei o muro. O silêncio da casa me deu medo, mas não sabia para onde ir. Atravessei o jardim, segui em direção do quartinho, ao me aproximar constatei que era uma lavanderia e um banheiro. O jeito era passar a noite ali. Atrás da porta coloquei minha mala e me encostei nela. Entre cochilos e sobressaltos, notei alguém se aproximando do meu esconderijo.

— Quem está aí? Tem alguém aí?

Não respondi. Pigarreou. Fiquei quieto. Percebi os mesmos passos se distanciando. Só podia ser Emílio, mas na situação em que me encontrava não tinha certeza de nada. Mesmo assim abri uma fresta da porta e reconheci o meu primo na penumbra da madrugada.

— Emílio, sou eu! Joaquim de Zeca Martins.

— Rapaz, que maluco! Que horas você chegou?

— Por volta de meia-noite. Chamei, como ninguém respondeu, me escondi aqui. Você devia estar muito cansado… Recebeu minha carta?

— Cara, quando estou sozinho, depois que fecho a porta, o mundo pode desabar do lado de fora, eu não saio não. O importante é que você chegou bem. Sim, recebi sua carta. Que bom primo, você veio! — falou com um aperto de mão e um abraço caloroso.

Entramos na casa. Ele preparou um cafezinho pra nós. Enquanto isso, eu colocava na mesa o pão de ló feito por minha tia, passava os recados dos tios e conversávamos.

— Boêmio também trabalha, meu camarada véi. Tenho que acordar cedo de segunda a sexta-feira. Além do mais, precisamos provar na carteira que somos um trabalhador, se não os guardas prendem a gente como suspeitos de qualquer coisa. Os caras nos param na rua e nem falam o motivo da abordagem. Joaquim, hoje você deve descansar, na próxima semana sairemos para procurar um trampo pra você. – Era uma quinta-feira.

— Nada de descanso, quero ver o quanto antes o que me espera por aqui.

— Então vamos começar pelo metrô, a mais nova maravilha de São Paulo e do Brasil! Vamos até a Vila Mariana, de lá pegamos um ônibus, descemos no centro, na praça da República. Olhe, falta pouco para liberarem o novo trecho na Liberdade, aí vai melhorar bastante para quem mora neste bairro e trabalha naquelas imediações como eu. Deixemos o carrinho para outras paradas — falou, agilizando a nossa saída e tentando me animar.

Emílio desenhou um mapa com as principais ruas onde eu deveria procurar emprego. Ele me deixou numa esquina da rua Barão de Itapetininga e combinamos de nos encontrar num café próximo do trabalho dele, às quinze horas. Quando me vi sozinho, meus pensamentos entraram em ebulição. À medida que admirava a grandeza da cidade, eu me perguntava se queria mesmo ter vindo.

Quantas vezes pensei: é melhor ser pobre na terra da gente do que se tornar um miserável nas periferias das grandes cidades. Mas nós temos essa danação de desejar desbravar o mundo. Emílio pelo menos entende de muitos assuntos. E eu, vou trabalhar em quê? No auge dos meus vinte e três anos, sem nenhuma experiência em serviços da cidade. Ah, se eu conseguisse uma vaga de vendedor numa loja dessas! Sempre fui bom pra fazer contas, tenho o curso ginasial e isso já ajuda.

Conheço pessoas que vieram e trabalham na força do braço com baixos salários. Disseram não voltar por vergonha de retornar em condições piores do que quando saíram da sua terra. Com o dinheiro ganho na diária aqui, mal dá para comer pão com manteiga no café da manhã. Mas o meu amigo Miguelino já comprou seu terreninho no São Miguel Paulista. Escrevia dizendo que alguns ricos daqui preferem cearenses para trabalhar em suas chácaras. Parecia estranho pensar nisso. Às vezes, ele se ressentia lembrando do que ouvia. Achavam que nós sabemos apenas capinar e correr a cavalo na pega de boi.

As horas iam passando e eu tentando digerir aquela enxurrada de emoções tão intensas como as ondas da praia de Iracema quando fui visitar Emílio em Fortaleza. Lembrei do verde do mar, das serras; do maracatu, do aboio e do meu sertão. A saudade bateu mais depressa do que imaginei. Mas estava disposto a topar qualquer tipo de trabalho. Entretanto, naquele primeiro dia não consegui nada. Não era assim tão simples, a não ser que a pessoa já fosse indicada por alguém.

No dia seguinte fomos de carro. Meu primo falou de uma grande loja que abriu uma filial na avenida São João e me deixaria lá. Também avisou: leve sua melhor roupa, na volta vamos fazer um pit stop na rua Augusta. Hoje é só o aperitivo. Ao mesmo tempo que falava, colocava no carro sua bagagem, um lindo violão e outros instrumentos.

Na loja, preenchi uma ficha com meus dados pessoais e outras informações para concorrer a uma vaga de vendedor. Segui minha busca. Na hora do almoço, parei numa padaria e, em conversa com o rapaz que me atendeu, contei o motivo de estar ali. Ele me disse que estavam precisando de um ajudante e chamou o dono do estabelecimento. Este, por sua vez, já veio com um avental e uma vassoura na mão, me lançando um olhar debochado. “Já terminou de comer? Nem precisa pagar o almoço. Já pode começar agora”.

Até aceitaria de boa, juro. Porém, precisava me encontrar com Emílio dentro de duas horas e não teria como avisá-lo. Tentei argumentar para começar o trabalho no dia seguinte, mesmo sendo um sábado. Mas aquele homem afetado com ar de superioridade estava irredutível. Tirei o dinheiro da minha refeição do bolso, joguei em cima da mesa e saí rapidamente.

Ao chegar no local combinado com o meu primo, fiquei remoendo o acontecido. Era evidente que eu não queria levar uma vida de cão. Poucos minutos depois, ele chegou. Entrei no carro e Emílio arrancou para a casa de um colega dele. Tomamos um banho lá e seguimos para um show universitário. Só então soube que ele cantava nos finais de semana, e com gente famosa.

Sabia do seu envolvimento com a música, mas nem de longe imaginava que fosse tanto.

— Parabéns, cara. Arrebentou!

— Sabe, Joaquim, nunca parei pra pensar como cheguei aqui. Uma pequena participação vale tudo! Você viu? O pessoal do Ceará abusa do talento. Músicos excelentes. E Ednardo com seus arranjos de fazer inveja. Suas melodias, letras e instrumentos numa perfeita sincronia com o popular e o erudito.

Meu primo extravasava no meio daquela turma genial. Ele, sempre espirituoso, tinha resposta pra tudo na ponta da língua. Após a sua participação no show, saímos para jantar próximo dali. No final daquele dia, eu me esforçava para demonstrar entusiasmo com tudo aquilo. Pessoas alegres, bem vestidas, era um outro mundo para mim que vinha de longe. Eu vi São Paulo, o glamour e o disfarce da solidão.

Os dias foram correndo junto com a pressa da cidade. Fui selecionado para trabalhar na moderna loja. Nem dava tempo para falar das minhas afobações… Não era difícil entender que não me encaixava nessa vida. Cumprido o período da experiência no trabalho e com as notícias de chuva para as bandas da minha terra, comprei a passagem de volta. Sem medo de errar, levarei o disco mais especial da minha vida O romance do pavão mysteriozo. Toadas que animam e aquecem meu coração. Oh, meu Deus! Também tenho pressa. Adeus, São Paulo.

Sobre a autora:

Janir Ribeiro

Escritora, professora de História, mãe e avó.

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