Literatura não faz revolução?

O modo de produção, diz o marxismo, condiciona a vida social e, através dela, a vida intelectual. O fator econômico constitui, em última instância, o fator determinante. Mas ele não é o único fator. Produto da sociedade, a literatura está submetida a influências intermediárias e complexas ao fim das quais a economia não aparece senão depois de uma série de múltiplas transmissões. A literatura, como a arte, é portanto uma superestrutura ideológica que se ergue sobre a base de determinadas condições econômicas, mas realiza um desenvolvimento próprio, e sofre, apesar de sua relativa autonomia, os efeitos das outras superestruturas ideológicas — filosofia, ciências, direito, moral, religião, etc.; por sua vez, ela reage sobre a sociedade da qual é a expressão, contribuindo para modificá-la”. (Jean Fréville, 1936)

Essa semana, eu ouvi a coisa mais burra expelida de uma boca.

A mesma que grita aos quatro cantos da universidade o valor dos seus estudos, muito melhor aproveitados, do que o restante de nós, meros mortais, estúpidos e ignorantes. Esse ser de mente brilhante, única e exclusiva; detentor de todo o conhecimento humano, político e social; um ser superior, consciente e grande aproveitador de seus incontáveis privilégios é, também, o único, em todo o curso de História, que sabe fazer revolução!

É ou não é uma lenda?

Ou melhor, um mito?

E tanto conhecimento não merece ficar guardado numa jovem cabeça masculina. Obviamente nós, os ignorantes, alienados e afetuosos alunos do segundo semestre do turno da noite fomos agraciados e contemplados com tamanha inteligência.

Ter sua fala interrompida por essa lenda? Um privilégio! Ouvi-lo repetir exatamente a mesma coisa que você acabou de dizer, mesmo que ele não tenha lugar de fala ou experiência para tais afirmativas? Ora se não é a melhor forma de validação? Afinal, é um intelectual reafirmando suas palavras, então você pode estar certo (um pouquinho, talvez?).

Mas confesso que ontem fiquei um pouco decepcionada.

Não com ele, lógico. Ele é perfeito!

Mas comigo. Com a minha tolice e, consequentemente, com a tolice de intelectuais, professores e amigos que, assim como eu, passaram anos debruçando-se sobre a Literatura, sobretudo sobre as suas contribuições à sociedade, à humanidade, à historiografia.

Como pude desperdiçar uma vida estudando uma coisa que, segundo o ser mais inteligente que já passou pelos corredores da URCA, não serve pra nada!

Literatura não faz revolução!

Você não se sente tola, cara nordestinada, por estar aqui, há quatro anos, se interessando por uma coisa inútil?

Que tola foi a Conceição Evaristo, ao dizer que a Literatura preenche buracos que a História não alcança. E a Clarice Lispector que passou a vida domando a escrita, para nada, por que, qual o valor dos seus livros na sociedade? E quando eu penso em Cecília Meireles, que era pior ainda, pois não era nem alegre, nem triste, era poeta. Pobrezinha, irrelevante!

Alguém avisa pro Marcos Napolitano que sua pesquisa sobre a relação entre arte e política está errada, que ela não pode ser analisada tanto como objeto de uma ordem política vigente e a serviço de um poder consolidado, muito menos como objeto de resistência e crítica dessa ordem, relacionada aos processos de luta, engajada e contestatória, porque ela não serve pra nada! Arte e Literatura não fazem revolução!

Quando lembro que passei horas escrevendo uma monografia, defendendo que a arte era “uma das mais importantes produtoras de fenômenos de transformação, reprodução e compreensão de um sistema social, portanto, sua produção “engajada” se relaciona diretamente ao papel do artista-intelectual e sua relação com os discursos e valores políticos”, eu me sinto cada vez mais estúpida, tola e iludida! Minha revolta transborda pelos meus dedos!

E o Mário de Andrade que considerava que, embora o artista não seja político, enquanto homem, “a obra de arte é sempre política enquanto ensinamento e lição; e quando não serve a uma ideologia serve a outra, quando não serve a um partido serve ao seu contrário… Que o artista, mesmo que queira, jamais deverá fazer uma arte desinteressada. O artista pode pensar que não serve a ninguém, que só serve à Arte, digamos assim. Aí está o erro, a ilusão. No fundo, o artista está sendo um instrumento nas mãos dos poderosos. O pior é que o artista honesto, na sua ilusão de arte livre, não se dá conta de que está servindo de instrumento, muitas vezes para coisas terríveis” (Barbosa, 1974). TOLO!

O que falar então de Karl Marx? Que, embora não tenha se dedicado a escrever especificamente sobre teoria literária, mas, em suas obras, nos proporcionou inúmeras reflexões para que nós, iludidos, acreditássemos que a Literatura tinha um papel essencial na sociedade, além da estética e do entretenimento.

Confesso que nunca me considerei uma mulher com inteligência acima da média, mas eu me considerava uma boa estudante e, sobretudo, uma boa intérprete. O problema é que ler um fragmento como: “O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico etc. se funda no desenvolvimento econômico. Mas estes elementos interagem entre si e reatuam também sobre a base econômica. Não é que a situação econômica seja a causa e a única atuante, enquanto todo o resto seja efeito passivo. Ao contrário, há todo um jogo de ações e reações à base da necessidade econômica, que, em última instância, se impõe” (Marx & Engels, 2012), me faz pensar na Literatura, bem como a arte num geral, como um espaço de tensão ideológica, afinal da mesma forma em que elas são influenciadas pela economia elas também a influenciam.

A verdade é que eu poderia citar inúmeros teóricos que compreendem o valor da Literatura para a sociedade, para a educação e para o próprio desenvolvimento humano, mas isso não me faria diferente do meu colega que a despreza. De nada me importa o conhecimento teórico sem a sensibilidade da arte. É na falta de humildade que reside a ignorância.

O que nos diferencia são as lágrimas que não consigo esconder, quando sou tocada pela arte, pela poesia e, principalmente, pela Literatura. O que nos diferencia é o borbulhar no meu coração quando meus amigos insistem em me chamar de poeta, mesmo que eu não me ache merecedora.

Se fazer revolução pela Literatura faz de mim tola, aceito o estigma. Pior seria o vazio de não ser atravessada por ela!

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Francisco de Assis. Testamento de Mário de Andrade e outras reportagens. Rio de Janeiro: MEC; Cadernos de Cultura, 1974.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Trad. José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

Sobre a autora:

Shirley Pinheiro

Formada em Letras. Graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri.

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