Quando eu te conheci, ali pela década de 1990, não fazia ideia de que você se tornaria minha paixão literária. Eu tinha uns vinte anos, alguns sonhos, muitas dúvidas em relação à minha existência e uma vontade louca de ler e escrever como forma de resistência ao caos que era à minha vida.
Não é fácil explicar o que nos aproxima de certos autores e de outros não. Muitas vezes é o próprio acaso e não encontramos justificativas racionais e plausíveis. Eu ouvi falar que nossas escolhas podem ser explicadas pela existência de “anjos da guarda da leitura”. São eles que nos conduzem a certas obras e a certos autores, que acabam contribuindo para nossa formação acadêmica e nossa evolução espiritual.
Primeiro, Drummond, você foi uma leitura aleatória de um livro que caiu em minhas mãos. Depois, objeto de um seminário na disciplina de Literatura Brasileira, em meu Curso de Letras, na Universidade Estadual do Ceará (UECE).
O tempo passou e na minha memória um verso ficou cristalizado: “Vai, Carlos, ser gauche na vida!”. Você disse, no poema “Infância”, que não sabia que sua “História era mais bonita que a de Robinson Crusoé”, mas eu me sentia mais gauche do que você.
Nos anos 2000, eu realizei um dos meus grandes sonhos: fazer o mestrado em Letras na Universidade Federal do Ceará (UFC). Levei-te comigo na condição de pesquisado. Terceiro encontro. Pudemos nos conhecer mais intimamente.
Descobri em você, um mineiro nascido no início do século XX, mais precisamente no dia 31 de outubro de 1902, um universo de pedras, enigmas, sombras, personagens, amores, reflexões, lições, impurezas, corpos e paixões. Descobri, ainda, Drummond, que para além de poeta, contista e cronista, que você foi um pintor de situações, um observador e um leitor arguto de seu tempo.
Em sua vasta e multifacetada obra, você registrou do cotidiano em Itabira (“Cidadezinha qualquer”) a pedra no meio do caminho (“No meio do caminho ”); de seu nascimento gauche enquanto poeta (“Poema de sete faces” ) a uma feia flor que “furou o asfalto, o tédio, o nojo e ódio” (“A flor e a náusea”), o fazer poético (“Poesia”), a vontade de ser rei mundo para decretar que mãe não morre nunca (“Para sempre”) etc. Todas essas composições exalam uma extrema sensibilidade, inteligência, senso de humor e emoção contida. Formalmente, elas se caracterizam pelo verso livre e pela mescla da linguagem coloquial e da linguagem culta.
Passeou por ritmos, sons e sensações, mas o cerne da sua obra é a lírica e a ironia, até chegar à universalidade. Atingiu-a por meio do individualismo e de experiências pessoais. Seus temas recorrentes foram: a existência humana, os amigos e a família, as mazelas sociais, o pessimismo, a morte, o amor a mulher e à sua terra natal, a visão sarcástica do mundo e das pessoas.
Sob um posto de vista individualista, melancólico e cético escreveu suas três primeiras obras: Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934) e Sentimento do Mundo (1940). Contudo, os versos de A Rosa do Povo (1945) nos mostram um poeta maduro que se encaminha em direção da história contemporânea e da experiência coletiva, participando, solidarizando-se social e politicamente, descobrindo na guerra (travada não mais consigo mesmo) uma luta mais cruel e sangrenta e que, portanto, é preciso sair de si e estar com outro.
Nosso quarto encontro foi em 2020, quando a UFC me conferiu o título de doutora por fazer aquilo que eu faço de melhor: ler você. A você, poeta multifacetado, detentor de uma vasta obra que, tal como Camões ou Fernando Pessoa, conseguiu refletir as inquietações de uma época, meu amor eterno.
Sobre a autora:
Luciana Bessa Silva
Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler