Nas palavras do cantor Belchior, Nordeste é ficção. No poema de Patativa do Assaré, o Nordeste é poesia. Na canção de Tim Maia, Nordeste é lindo, terra boa, de onde Manuel Bandeira saiu e para onde queria voltar, com sua amada, no poema Brisa, deixando os amigos, livros e riquezas para trás, para viver de brisa no calor nordestino. O fato é, que entre a seca e o baião, entre o “velame e a macambira”, o Nordeste é muito mais do que uma posição geográfica.
Por isso, para preservar a memória, os costumes, os valores, a história, arte e culinária do povo nordestino, nasceu, em 1979, o Museu do Homem do Nordeste, com um acervo que reúne e revela a pluralidade das culturas que constituem as raízes nordestinas.
Localizado em Recife, capital pernambucana, o Museu do Homem do Nordeste foi criado a partir da fusão de outros três museus: o Museu de Antropologia (1971-1988), que trouxe objetos indígenas, peças de manifestações afro-brasileiras e artigos de habitantes da zona rural do Nordeste entre os séculos XVIII e XIX; o Museu de Arte Popular (1955 – 1978), com brinquedos de madeira e peças de cerâmicas de importantes artistas da região; e o Museu do Açúcar (1963 – 1978), que deixou de herança louças brasonadas e peças que documentam a história do açúcar dos pontos de vista social, agrícola e tecnológico. Nas palavras do coordenador geral do museu, Frederico Almeida, esse “foi talvez o primeiro projeto do Norte e Nordeste que foi construído exclusivamente para abrigar o museu”.
Um museu de antropologia, cujo objetivo é desbravar a identidade do homem comum, o Museu do Homem do Nordeste estuda a memória social, dando visibilidade à diversidade cultural e à própria identidade do povo nordestino. A antropóloga Ciema Mello o define como “um museu que dúvida” – que pergunta mais do que responde. “Nós não sabemos responder essa pergunta [quem é o homem do Nordeste?]. Esse homem existe como uma realidade concreta, ou é apenas um conceito? A certeza que o museu tem é que o Nordeste é para nós, um ponto cardeal, como é para todo mundo”.
Nesse sentido, a construção identitária está intrinsecamente ligada à formação de memória social e coletiva. O sociólogo Michael Pollak dizia que a concepção de memória oficial se dá pelo silenciamento das vivências de grupos marginalizados, as chamadas “memórias subterrâneas”. Sendo assim, ao analisar as representações midiáticas do nordestino e do sertão, (seja nas novelas, no jornalismo, ou no humor), a imagem é sempre de um povo matuto, bruto, miserável e atrasado, que fala “errado” e veste roupas remendadas. Esse estereótipo (enraizado ao preconceito) surgiu a partir da necessidade do sul em afirmar-se como um Brasil ideal, (civilizado e moderno), com um “modelo de ser” importado da Europa. Em contraposição a esse modelo, estava o Brasil “real”, o norte, de pessoas mestiças e condenadas ao calor da seca, dando origem à separação política e cultural, demarcada pelos limites geográficos, e permeada por injustiças e repressões sociais.
Obras como Os Sertões, de Euclides da Cunha, consolidaram a ideia do homem nordestino que se perpetua até hoje. O sertanejo, que é, “antes de tudo, um forte”, resiste agora à ridicularização e invisibilização de sua cultura, seus costumes, dialetos e sotaques. Resistência que prevalece nas artes e literatura, com o surgimento do Movimento Regionalista, encabeçado pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Em seu Manifesto Regionalista, publicado em 1926, Freyre diz:
“Toda terça-feira, um grupo apolítico de “Regionalistas” vem se reunindo na casa do Professor Odilon Nestor, em volta da mesa de chá com sequilhos e doces tradicionais da região – inclusive sorvete de Coração da Índia – preparados por mãos de sinhás. Discutem-se então, em voz mais de conversa que de discurso, problemas do Nordeste.
[…]
Seu fim não é desenvolver a mística de que, no Brasil, só o Nordeste tenha valor, só os sequilhos feitos por mãos pernambucanas ou paraibanas de sinhás sejam gostosos, só as rendas e redes feitas por cearense ou alagoano tenham graça, só os problemas da região da cana ou da área das secas ou da do algodão apresentem importância. Os animadores desta nova espécie de regionalismo desejam ver se desenvolverem no País outros regionalismos que se juntem ao do Nordeste, dando ao movimento o sentido organicamente brasileiro e, até, americano, quando não mais amplo, que ele deve ter” (FREYRE, 1926).
Idealizado e criado por Freyre, o Museu do Homem do Nordeste esquadrinha a origem da alma do sertanejo, numa perspectiva que se distancia do estereótipo ideais de povo atrasado. Seu acervo conta com cerca de 15 mil peças que narram a religiosidade, hábitos, produções artísticas, lutas sociais e festa dos nove estados da região Nordeste, através de fotografias, roupas, pinturas, instrumentos musicais, esculturas e muito mais. É um espaço de reflexão e conexão com as raízes. Local para visitar e conhecer (a si mesmo) através das memórias e evocações do passado que conceberam a identidade do povo, que hoje grita aos quatro cantos “quanto mais sou nordestino, mais tenho orgulho de ser”.
REFERÊNCIAS:
CONHECENDO MUSEUS. Conhecendo Museus | Episódio: MUSEU HOMEM DO NORDESTE. YouTube, 13 de jul. 2020. Disponível em: <https://youtu.be/fq2fwMvkRO8 >. Acesso em: 20 de out. 2021.
MUSEU DO HOMEM DO NORDESTE. Fundação Joaquim Nabuco. 2008. Disponível em: <https://www.fundaj.gov.br/index.php/pagina-muhne >. Acesso em: 20 de out. 2021.
VASCONCELOS, Cláudia P. A Construção da Imagem do Nordestino/Sertanejo na Constituição da Identidade Nacional. In: II ENCONTRO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES EM CULTURA. 2006, Salvador.
Sobre a autora:
Shirley Pinheiro
Graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri.