O quinze

Meu primeiro contato com Rachel de Queiroz (1910-2003) foi através de sua obra de estreia O Quinze (1930). Dois núcleos marcam essa narrativa dolorosa e reflexiva – a (não) relação do amor entre Conceição e Vicente e a luta por sobrevivência da família de Chico Bento – que atravessa décadas e se mantém atual. 

O fenômeno da seca, pano de fundo da obra, é responsável por Conceição convencer Mãe Nácia (por meiguice, por súplica) a desenganar-se do inverno e levá-la para Fortaleza pelo menos por um período, já que a própria avó afirmava: “Não sei como não cega a gente… Já estou preta e descascando, só do mormaço”. Na capital, suplicava ao “castíssimo esposo da Virgem Maria” por chuva, que para ela significava não deixar morrer “de fome e de seca” o seu Logradouro, seu lugar de pertencimento há mais de 25 anos, pois dele só saíra “a não ser para o Quixadá!…”, mas logo voltara. 

Excetuando o espírito religioso, Vicente também espera em dias melhores com a chegada das chuvas, por isso é categórico ao afirmar:  “Enquanto houver juazeiro e mandacaru em pé e água no açude…”. Cada um dos personagens, Mãe Nácia e Vicente,  dotados de  fé e de força, crê na variação das quatro filhas e companheiras do deus-sol, Hélios – as estações do ano. 

Na contramão das personagens anteriores, Conceição desacredita tanto nas crenças de sua Mãe, como na própria chuva, assim como Dona Maroca, que manda abrir as porteiras do curral, solta seu gado e deixa desempregado “seu pessoal”, como é o caso de Chico Bento. Ele negocia algumas reses “Um boiote, uma vaca solteira e um garrote” e sua roupa de couro de capoeiro para juntar dinheiro e conseguir seguir para o Norte. O que fascina nesta narrativa é o aspecto cru do narrador que procura se manter fiel aos fatos e a linguagem regionais.  

Mãe Nácia, Vicente e Chico Bento integram o time dos esperançosos nas mudanças climáticas.  Foi justamente o sentimento da Esperança que fez este chefe de família animar sua esposa Cordulina, vencer sua natureza bruta, esquecer-se das “saudades, fome e angústia” e imaginá-lo “rico e vencedor”. O que Chico não contava era com as pedras no meio do caminho: perca de três filhos –  Josias comeu mandioca crua e morreu; Pedro se perdeu dos pais, Duquinha foi adotado pela madrinha Conceição. O poder corrosivo da seca destruiu vidas, só não roeu (para usar um termo drummondiano) os sonhos de Chico Bento. 

Única personagem marcada pela fecundidade em O Quinze, Conceição, é um substantivo de origem religiosa que quer dizer “fruto” ou “concepção”. Ela concebeu um filho (embora por adoção), escreveu “um livro sobre pedagogia”, rabiscou “dois sonetos” e citava escritores da biblioteca da avó – “Nordau ou o Renan” – embora tivesse sua própria estante de livros quase “tudo decorado”. Além disso, concebia “ideias” e uma delas era que era “solteirona” e “velha”. Gostava do primo Vicente, mas era ciente da “diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida”, motivo pelo qual guardou para si o amor que tinha por ele. 

A seca, que se transformou em uma indústria, que mata uns (milhares) e enriquece outros, também foi a responsável pelo Governo instalar campos de concentração para abrigar os refugiados com promessas de trabalho e de sustento – “Diziam que aqui o governo andava dando comida aos pobres…Vim experimentar…”. Na verdade, eram espaços de exploração, desrespeito e exclusão com o objetivo separá-los do resto da população da cidade, uma espécie de apartheid em pleno sertão nordestino. 

Parafraseando Cazuza que vê “o futuro repetir o passado”, eu vejo na obra O Quinze, de Rachel de Queiroz as mesmas problemáticas (fome, miséria, seca, invisibilização do povo nordestino) mais de noventa anos depois… e me questiono: por quê?.

Fonte: 

QUEIROZ, Rachel. O Quinze. São Paulo. Ed. Siciliano, 1993.

Sobre a autora:

Luciana Bessa Silva

Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler

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