A poesia despida de Gilka Machado

“Odor que o sangue inflama e que um desejo imenso

de prazeres sensuais em nossas almas ferra,

quer perfume o brancor de um rendilhado lenço,

quer percorra a cantar as planícies, a serra.”

(Sândalo — Gilka Machado)


As duas primeiras décadas do século XXI em muito se diferem às do século anterior, mudaram as moedas, a tecnologia, a moda e, embora enfrentemos um período de retrocesso, também tivemos mudanças no cenário político. As mulheres garantiram o direito ao voto, ao trabalho sem necessidade de autorização do marido, ao divórcio, a leis de combate à violência contra a mulher (a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio) e, este mês, a luta feminina garantiu o direito à distribuição gratuita de absorventes a pessoas que menstruam em situação de vulnerabilidade social.

As artes também acompanharam as mudanças políticas e sociais de seu tempo. Se no século XX, autoras como Hilda Hilst e Cassandra Rios, foram censuradas e perseguidas pela sociedade e crítica literária da época, levadas ao esquecimento e desvalorização de suas obras pelo conteúdo erótico que abordavam, hoje em dia, com o avanço do movimento feminista, a liberdade sexual das mulheres tornou-se pauta recorrente em discussões na televisão, no rádio, na internet, na música — “Me agarra na cintura/ Me segura e jura que não vai soltar/ E vem me bebendo toda/ Me deixando tonta de tanto prazer” (Ana Carolina) — e na poesia —“a pele é o maior órgão do corpo humano/ a pele pulsa/ arrepia com o toque da mão desejada/ a pele formiga/ de nervoso a pele não pode disfarçar quando o coração morre de ódio ou de tesão” (Dia Nobre).

No Brasil, a pioneira na produção de literatura erótica, foi a escritora carioca Gilka Machado, reconhecida pelo poeta Carlos Drummond de Andrade como “a primeira mulher nua da poesia brasileira”, em alusão ao livro A Mulher Nua (1922), o obra de poesias em que Gilka aborda temas considerados tabus, como o prazer feminino, a sensualidade, as paixões e desejos proibidos — á tua vinda/ volúpias virginais/ e, beijando-me tanto, não confortas/ a anciã infinita dessas virgens mortas/ que, em ímpetos violentos,/ se manifestam nos meus sentimentos!/ Beija-me mais, põe todo o teu calor/ nos beijos que me deres,/ pois vive em mim/ a alma de todas as mulheres que morreram sem amor! (Gilka Machado). Para Drummond as mulheres que gozam hoje de plena liberdade literária para cantar as expansões do instinto e as propriedades eróticas do corpo deviam ser gratas a essa antecessora de 29 anos, viúva pobre que ganhava a vida com esforço

Nascida em 12 de março de 1893, no Rio de Janeiro, Gilka Machado teve seu primeiro livro — Cristais Partidos — publicado em 1915, mas seus prelúdios poéticos se deram desde a infância. Aos 13 anos, escandalizou a crítica especializada da época pelo conteúdo de sua poesia ao vencer os três primeiros lugares de um concurso literário organizado pelo jornal A Imprensa, com poemas sob seu nome e pseudônimos, que lhe renderam a definição de “matrona imoral”.

Autora de A Revelação dos Perfumes (1916) e Sublimação (1938), Gilka Machado revolucionou a escrita literária feminina. Em 1933, foi considerada a maior poeta do século XX e poderia ter sido a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), se não tivesse recusado o convite de Jorge Amado, em 1976. Mesmo com tamanha notoriedade, Gilka foi relegada a uma condição de marginalidade, apagada histórica e literariamente, um reflexo do ostracismo reservado às mulheres.

Despida de pudor social, Gilka Machado foi uma mulher em seu tempo. Transgressora e pioneira, renegou o papel a ela designado por uma sociedade patriarcal, participou da política, atuou no Partido Republicano Feminino, criado com o objetivo de integrar mulheres no cenário político da sociedade da época e elevou a escrita feminina a um espaço antes reservado somente aos homens. Uma mulher, cujo talento resiste ao esquecimento.

Referências:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Gilka, a antecessora. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1980, Caderno B, p. 07.

NOBRE, Dia. Todos os meus humores. 1. ed. Guaratinguetá: Penalux, 2020.



Sobre a autora:

Shirley Pinheiro
Shirley Pinheiro

Shirley Pinheiro

Graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri.

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