Eu sou o Renato Russo
Eu escrevo as letras, eu canto
Nasci no dia 27 de março, eu tenho 23 anos
E sou Áries e ascendente em Peixes
Eu trabalhava com jornalismo, rádio, era professor de Inglês também
E comecei a trabalhar com 17 anos e tudo
Mas só que de repente tocar Rock era uma coisa que eu gostava mais de fazer
E como deu certo eu continuo fazendo isso até hoje
(Riding Song — Legião Urbana, 1997)
Quando surgiu, como líder, vocalista e baixista da banda Legião Urbana, ao lado de Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos, na década de 80, Renato Russo era só mais um cara que cantava e usava óculos, tocando num trio de rock nas noites de Brasília. Em 2022, quase 26 anos depois de sua morte, Renato ainda é um ícone do rock e segue encantando gerações que não o conheceram em vida, mas que se identificam com suas letras, o grito sufocado de uma juventude que é rica, que é pobre, que sofre e ninguém parece perceber, como canta em Aloha (1996).
Renato Manfredini Júnior nasceu em 27 de março de 1960, na capital do Rio de Janeiro, onde viveu parte da infância, antes de se mudar para Nova York com a família. Mas foi em Brasília que nasceu Renato Russo. O sobrenome, em referência aos filósofos Bertrand Russell e Jean-Jacques Rousseau, surgiu a partir de Eric Russel, vocalista da banda fictícia The 42nd St. Band, criada por Renato, entre os quinze e dezesseis anos de idade, enquanto se recuperava de uma cirurgia mal sucedida para tratar epifisiólise, uma doença óssea rara e pouco conhecida. Renato adaptou Russell para Russo e criou uma persona atemporal.
Conhecido como o Trovador Solitário, Renato Russo escrevia músicas para a posteridade e cantava intimamente sobre suas experiências deixando, para os fãs, a responsabilidade de decidir o que significava cada música, ora com letras extremamente melancólicas — “Hoje a tristeza não é passageira/ Hoje fiquei com febre a tarde inteira/ E quando chegar a noite/ Cada estrela parecerá uma lágrima” (A Via Láctea, 1996); “Me sinto tão só/ E dizem que a solidão até que me cai bem” (Maurício, 1989); “Disseste que se tua voz tivesse força igual/ À imensa dor que sentes/ Teu grito acordaria/ Não só a tua casa/ Mas a vizinhança inteira (…) Lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa” (Há Tempos, 1989) — ora com críticas sociais que, décadas depois, se mantêm atuais — “Vamos festejar a inveja/ A intolerância e a incompreensão/ Vamos festejar a violência/ E esquecer a nossa gente/ Que trabalhou honestamente a vida inteira/ E agora não tem mais direito a nada” (Perfeição, 1993); “Nas favelas, no senado/ Sujeira pra todo lado/ Ninguém respeita a constituição/ Mas todos acreditam no futuro da nação” (Que País É Esse, 1987); “Nosso dia vai chegar/ Teremos nossa vez/ Não é pedir demais/ Quero justiça/ Quero trabalhar em paz/ Não é muito o que lhe peço/ Eu quero o trabalho honesto/ Em vez de escravidão” (Fábrica, 1986).
Cantor, compositor, produtor, multi-instrumentista, Renato Russo foi o dono de uma voz incomparável. Antes da fama, trabalhou como professor de inglês e locutor de rádio. Em 2008, ficou na vigésima quinta posição na lista dos Cem Maiores Artistas da Música Brasileira, promovida pela revista Rolling Stones.
Renato Russo não sabia onde estava indo, mas sabia que não estava perdido, lutava contra o alcoolismo e contra o consumo de drogas, que o levaram a vinte e nove dias de internação numa clínica de reabilitação no Rio de Janeiro, período que antecedeu o lançamento de O Descobrimento do Brasil (1993), o sexto álbum de estúdio da Legião Urbana. A primeira canção do disco — Vinte e Nove — é um relato em versos desses dias:
Perdi vinte em vinte e nove amizades
Por conta de uma pedra em minhas mãos
Embriaguei morrendo vinte e nove vezes
Estou aprendendo a viver sem você
Já que você não me quer mais
Passei vinte e nove meses num navio
E vinte e nove dias na prisão
E aos vinte e nove com o retorno de saturno
Decidi começar a viver
Quando você deixou de me amar
Aprendi a perdoar e a pedir perdão
E vinte e nove anjos me saudaram
E tive vinte e nove amigos outra vez
Mais tarde, em 2015, foi publicado Só Por Hoje e Para Sempre, um diário de suas atividades no “Programa de Doze Passos” oferecido pela clínica, que consistia em relatos e reflexões profundas sobre sua vida que o ajudavam a entender como tinha chegado àquela situação. Em um desses momentos de autoanálise, Renato escreve: “acho que sempre me anulei por não entender a maldade do mundo, o desinteresse, a repressão. Quero a simplicidade, sim, harmonia, beleza, poesia. E me fechei, me isolei, por não suportar a intensidade dos meus sentimentos e não querer ser incompreendido e ridicularizado. Não tinha força para suportar isso. Mas transformei dor em sofrimento, autopunição, insanidade. (…) Não sei aonde estou, só sei que não estou perdido”.
Renato Russo cantou: “É tão estranho/ Os bons morrem jovens/ Assim parece ser” (Love In The Afternoon, 1993) e se foi cedo demais, em 11 de outubro de 1996, com 36 anos, vítima da Aids. Deixou para trás uma legião de fãs que perpetuam seu legado, de pais (e) para filhos, de geração (Coca-Cola) em geração (Coca-Cola). Na opinião de quem escreve, foi o melhor cantor de rock que esse país já nos proporcionou, capaz de colocar a própria alma em suas canções ou cantar a alma de quem o ouve. Um poeta, como muitos, acostumado à solidão (que ele considerava o mal do século), mas que buscava paz de espírito nesse mundo doente. Um homem que fazia da música uma confissão e cantava canções de despedida. Parafraseando Renato Russo em Andrea Doria (1986), dele temos o que ficou, e temos sorte até demais, lembremos então de sua promessa “Se você quiser alguém pra ser só seu/ É só não se esquecer: estarei aqui” (Eu Era Um Lobisomem Juvenil, 1989).
REFERÊNCIAS:
RUSSO, Renato. Só por hoje e para sempre: Diário do recomeço. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015
RUSSO, Renato. The 42nd St. Band: romance de uma banda imaginária. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
Sobre a autora:
Shirley Pinheiro
Graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri.