Luciana Bessa
Enquanto o poeta Mário de Andrade dizia que era trezentos, Lygia Fagundes Telles, chamada de “dama da literatura brasileira”, alegava que era apenas duas: a verdadeira e a outra.
A outra, pragmática e calculista, causava-lhe náuseas e, segundo Lygia, não nasceu com ela, mas com ela morreria. Outrossim, não lhe seria permitido brigar com a “indesejada das gentes”, mas quem foi que disse que essa mulher, salva da depressão e do desespero pela literatura, não lutaria até o último instante?
Estreando na literatura em 1938 com a obra “Porão e sobrado”, financiada por seu pai (Durval de Azevedo Fagundes), Lygia tinha na palavra seus mais caros argumentos. Dois deles, em sua concepção, poderiam conservar-lhe a vida: “as pessoas que me amam vão sofrer tanto” e “tenho ainda que escrever um livro tão maravilhoso”. Contudo, uma resposta seca lhe chegou: o “livro não ia ser tão maravilhoso assim”.
Santo Agostinho afirmava que “A morte não é nada” – é uma mudança “para o outro lado do Caminho”. No dia 03 de abril de 2022, “a malquerida”, não aceitou os recursos dessa mulher “adorável”, nas palavras de Ignácio de Loyola Brandão, para quem a vida era luta renhida, e a levou para outra estrada.
Diferentemente das mulheres de sua família (mãe, tias “lá longe”, avó), que não tiveram coragem de atender ao chamado, à vocação e se tornaram “rainhas do lar”, Lygia adotou duas profissões de homens, conforme suas palavras: advocacia e literatura, mas foi essa última que a arrebatou fazendo-a produzir quatro romances – “Ciranda de Pedra” (1954), “Verão no aquário” (1964), “As meninas” (1973), “As horas nuas” (1989) – e vinte livros de contos dentre eles: “A disciplina do amor” (1980), “Venha ver o pôr do sol e outros contos” (1987) etc.
A baronesa de Tatuí, como o pai a chamava, era apaixonada por duas cores: verde e vermelho. Lygia afirmava que se tivesse uma bandeira “ela seria vermelha e verde”, esperança e paixão não destituída de cólera. Na impossibilidade de ser detentora de um dos mais importantes símbolos dos Estados soberanos, Lygia coloriu, então, sua escrita.
“O Cacto Vermelho” (1949), Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras no mesmo ano, apresenta doze contos dentre eles “Migra”, “Os mortos”, e “A confissão de Leontina”. E “Antes do baile verde” (1970), Prêmio Guimarães Rosa em 1972 e Prêmio Coelho Neto em 1973, que traz dezoito contos com temáticas variadas, que vão desde a loucura, passa pelo adultério, uso de drogas, virgindade, e chega à discussão da desmistificação dos papéis das mulheres.
A contundência da escrita de Lygia está no fato de ela construir uma perspectiva feminina da realidade dos fatos. Adotando a metanarrativa, fundindo o fantástico à realidade (contos “A caçada”, “As formigas”), influência do escritor Edgar Allan Poe, a linguagem fragmentada dessa imortal, membro da Academia Paulista de Letras (1985) e Academia Brasileira de Letras (2005), nos convida a refletir sobre a existência humana. A ganhadora do Prêmio Camões (1965), o mais importante da literatura lusófona, era defensora de “amar o inútil”, “plantar roseiras sem pensar em colher as rosas”, “escrever sem pensar em publicar”, envelhecer para se cumprir uma trajetória, enriquecer na solidão. E fazendo coisas assim “sem esperar nada em troca” partiu, deixando-nos uma obra intensa com algumas verdades: “o mundo dobra-se sempre às nossas decisões…”. Eu eternizo Lygia Fagundes Telles, afinal “Quem se esquece dela?”, perguntaria o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Sobre a autora:
Luciana Bessa Silva
Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler