Pequena Coreografia do Adeus, uma obra que encanta à primeira vista

Se me pedissem para definir fatores que fazem com que eu me encante com a escrita de um autor, quantos eu poderia citar? Identificação, temáticas, representatividade. Geralmente é necessário apenas um contato para que o encantamento aconteça, tanto, que muitas vezes, a primeira obra que li de um determinado escritor permanece sendo a minha preferida por muito tempo. Foi assim com Lygia Fagundes Telles e seu conto Venha Ver o Pôr do Sol; com Ferreira Gullar, com o poema Dois e dois: quatro; Gilka Machado, e sua poesia Mulher e, recentemente, com Aline Bei, quando li sua Pequena Coreografia do Adeus.

O segundo livro publicado pela escritora paulista, Pequena Coreografia do Adeus narra a história de Júlia Terra, uma mulher marcada pela relação conflituosa entre os pais e pelos traumas trazidos pelo divórcio. Dividida em três fases (Júlia, Terra e Escritora), a obra é narrada em primeira pessoa e mostra o amadurecimento da protagonista e sua busca por conhecimento de si mesma, do próprio corpo e dos próprios interesses.

Na primeira fase, nos encontramos com uma Júlia ainda criança transicionando para a adolescência, encarando a puberdade sob a rotina de violência, praticada pela mãe (“quando abri os olhos pela manhã/ senti um cheiro de/ sangue? merda. tinha descido minha menstruação./ Pois/ logo que voltei da escola/ tive que lavar/ sem máquina, você não vai usar a máquina/ o colchão, o lençol, o pijama, a calcinha/ depois corri/ com dona Vera cronometrando/ da cama até o vaso/ do vaso até a cama duzentas vezes/ duzentas/ vezes/ — Pra você não esquecer onde fica o banheiro nessa casa”), e o abandono do pai (“depois do divórcio, ele/ foi virando essa pessoa/ que passava algumas horas comigo/ o que era bom, claro/ mas eu sentia o amor escorrer pelos meus dedos, era com se meu pai tivesse sido descoberto/ pelo mundo/ foi se transformando aos poucos/ no sujeito que eu encontrava por acaso na rua”).

Aliás, violência e abandono são os temas centrais da obra. É coexistindo em meio a esse cenário, que Júlia se torna uma mulher insegura e deslocada, cujo único refúgio encontrado é um diário, seu mais íntimo confidente. É em seu diário onde ela pode ser sincera consigo mesma, onde registra a própria confusão com os sentimentos em relação aos pais e onde começa a ensaiar suas primeiras narrativas (“e depois de descobrir o poder do diário/ confesso que isso me machucava cada vez menos. / era quase melhor falar com a folha/ que apenas escutava/ silenciosa, mas atenta”).

A linguagem amadurece à medida que amadurece a protagonista. Nas fases seguintes é com uma Júlia adulta, cuidando da própria vida e em busca da própria identidade que nos deparamos. Uma Júlia em novos espaços, com novas pessoas, no entanto, com os mesmos fantasmas. As marcas do relacionamento familiar estão na dificuldade em entregar-se às investidas de possíveis pretendentes, em confidenciar suas angústias à viúva Argentina, sua relação mais afetuosa ao longo de 282 páginas. 

A leitura de Pequena Coreografia do Adeus carrega o público ao subterrâneo angustiante de uma jovem despedaçada, destroçada, mas em busca de um refúgio. Capaz de arrancar lágrimas até do mais frio leitor, Aline Bei, autora de O Peso do Pássaro Morto, experimenta uma nova estética, a prosa em forma de versos. Uma obra que encanta à primeira vista. 

REFERÊNCIA

BEI, Aline. Pequena Coreografia do Adeus. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

Sobre a autora:

Shirley Pinheiro

Graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *