“Eu me chamo Aglaia Negromonte. […] Meu nome não combina absolutamente comigo. Onde, a graça? […] Gosto do sobrenome […] Negromonte me faz pensar em mistério e solidão”
Sem brinquedos, sem animais de estimação, sem amigos e sem diálogo com os pais, assim foi a vida de Aglaia Negromonte, uma adolescente que sentiu profundamente as dores e os dramas da idade. A protagonista da obra de Marília Arnaud — O pássaro secreto — é atormentada por uma Coisa “alada e espantosa” que crescia dentro dela e fluía em suas artérias, o coração batendo em conjunto com o de sua hospedeira — “era da mesma matéria dos anjos, o que não queria dizer que eu fosse habitada por uma criatura de luz”.
Filha de um ator famoso e de uma professora, Aglaia surpreendia a mãe por já carregar, em seus poucos anos de vida, uma profunda tristeza ou algo mais complexo que isso — “Exaurida, ela sentenciou que aquilo era nada mais nada menos que tristeza, tristeza pura, e que tristeza como aquela não era normal numa criança. […] e ela gritava, exasperada, mas você só tem dez anos de idade, Aglaia”.
Tal tristeza se apodera gradativamente da protagonista, que narra os episódios que antecedem a sua tragédia. O choque ao se deparar com os “olhos de estátua” da moça que se jogou da ponte que Aglaia atravessava no caminho da escola, acontecimento que desencadeou crises de pânico, ansiedade e transtornos alimentares; a resposta violenta às agressões verbais que sofria dos colegas da escola — “Davam-me muitos apelidos. Havia os mais suaves como Aglordaia, e os cruéis como saco de batatas, pudim de banha, bolo fofo, rolha de poço. […] Naquele dia, eu ainda me encontrava plantada na calçada da escola, […] quando um dos garotos gritou Aglaiaaaaaaaa, baleiafante! No que os outros o acompanharam, Aglaiaaaaaaa, baleiafante! Aquele era o meu mais novo apelido, e eu levei só um segundo para imaginar o monstro que seria a mistura de uma baleia com um elefante. […] Olhei em torno e, por sorte, a pedra estava bem ao meu lado, no vão entre o meio-fio e o calçamento da rua. E era das pontudas! Apanhei-a, mirei o alvo, abaixei-me um pouco para imprimir força ao braço, e fiz a pedra voar. O garoto caiu duro, e por alguns minutos pensei que o matara”.
Tudo vai de mal a pior com a chegada inesperada de Thalie, a filha bastarda de seu pai, da qual ninguém sabia da existência, com exceção do progenitor, surge de Paris para morar com a família. É então que a Coisa dentro de Aglaia se intensifica. Suas inseguranças, o sentimento de inadequação e suas angústias crescem à medida que crescem os ciúmes, a inveja e o rancor pela garota bonita e delicada, o oposto de tudo que ela era, que chegou em sua vida e lhe roubou tudo, ainda que o que tinha já não era lá essas coisas.
A explosão de sua vida é a justificativa de todas as atrocidades que Aglaia comete no decorrer da narrativa, que, embora moralmente inaceitáveis, não só condizem com o comportamento da personagem, como são aguardados, visto que, com a evolução da narração, o mistério que permeia a história de Aglaia vai se mostrando obscuro e catastrófico.
Aglaia Negromonte é, de longe, uma das personagens mais fascinantes que já me deparei em meus anos como leitora. Seu encantamento pela literatura, pela música e pelas artes em geral fomentam uma narradora complexa e profunda, que atrai e repele o leitor. Este último que, embora consciente de que os relatos narrados estão intrínsecos às memórias obsessivas de uma adolescente amargurada e perturbada, portanto, sem muita credibilidade, consegue ser convencido por ela, seja por empatia ao seu sofrimento, seja por identificação, ou mesmo pela capacidade dessa narradora de manipular as palavras.
Em O pássaro secreto, Marília Arnaud provoca no leitor um misto de sentimentos caóticos, que combinam com sua protagonista. De maneira sensível e poética, a obra aborda temáticas que ainda causam estranheza e julgamentos em sociedade, mas que são mais comuns do que se fazem acreditar. Ler a tragédia de Aglaia, tal qual as tragédias shakespearianas devoradas pela garota, foi uma experiência sensorial, ora me sentia angustiada, ora me sentia fascinada, porém, durante todo o percurso da leitura, sentia minha própria Coisa atraída pelo caos que foi Aglaia Negromonte.
Sobre a autora:
Shirley Pinheiro
Graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri.