Atire em Sofia

“Ter aprendido a viver sozinha talvez fosse o maior patrimônio que acumulara em quase vinte anos de Rio de Janeiro. […] Saber ser sozinha, a consciência de que não precisa fazer sexo quando não estiver com vontade. Saber ser sozinha, curtir seu espaço, andar de um lado para outro num apartamento só seu”.

Amélia que me perdoe, mas Sofia é que era mulher de verdade. Independente, inconformada e livre, assim é a protagonista do primeiro romance da escritora baiana Sônia Coutinho. Nem serva, nem objeto, Sofia pagou o preço dessa liberdade com solidão e com julgamentos. E assim aprendeu a ser, sozinha, sem urgência, consciente de si mesma e dos próprios desejos e fantasmas — “Tenho um lado masculino que exerço de maneira muito consciente, não quero gravitar em torno de ninguém, faço questão de ser dona do meu nariz. Essa disponibilidade me agrada à beça, o que não quer dizer que, às vezes, não seja terrível”.

Publicado em 1989, Atire em Sofia narra os acontecimentos que sucederam a volta da jornalista Sofia à sua cidade natal, na Bahia, e os seus reencontros com as pessoas do seu passado — os amigos de adolescência e as filhas Maura e Milena. Sofia deixou tudo e todos para trás quando se livrou de seu marido castrador e foi morar no Rio de Janeiro. Por esta razão foi julgada pelas mães-que-criaram-seus-filhos, “nós nunca faríamos o que ela fez, ir embora assim, deixando duas filhas”, e pela sociedade que condena a mulher que se dispõe a viver plenamente a sua sexualidade, “damas que casaram na igreja e pela lei […] que aguentaram seus maridos, que viajaram pouco, que não frequentaram a universidade. […] homens que não foram para a cama com Sofia, mesmo dispostos a pagar”. E de tanto julgamento resultaram três tiros, cujo alvo “não era exatamente Sofia, sua pessoa física, mas o que ela representava, seu desafio”, sua liberdade.

Ambientada na segunda metade do século XX, a obra aborda temáticas que assombram as mulheres desde que se entendem por gente. Sofia se mostra como uma metáfora daquelas que transgrediram os limites sociais impostos ao seu gênero entre as décadas de 50 e 80. O livro traz reflexões acerca da posição social das mulheres, bem como a sua liberdade sexual.

Falar sobre sexualidade nunca foi fácil para as mulheres. Por muito tempo o prazer feminino durante o ato sexual foi algo inadmissível e inaceitável. Para evitar tal “heresia”, muitos métodos de tortura foram utilizados (e ainda são), como a clitoritomia, uma técnica de mutilação genital feminina, que remove, ainda na infância, o clitóris, órgão responsável pelo prazer das mulheres, para manter as meninas “puras”. “A maioria das razões apontadas para a mutilação genital feminina passa por aceitação social, religião, desinformação sobre higiene, um modo de preservar a virgindade, tornando a mulher “casável” e ampliando o prazer masculino”.

A virgindade é outro tema que toma forma na obra, dessa vez na pele de Milena, uma das filhas de Sofia, que é comparada à imagem da mãe, a mulher que a abandonou para viver seus desejos. Mas ao contrário da protagonista, Milena não consegue seguir em frente no ato sexual, ainda que ame seu namorado, questão que se fosse mais desenvolvida, atualmente poderia gerar um debate acerca da assexualidade, característica que define a falta total, parcial ou condicionada de atração sexual, mesmo que o tema só tenha ganhado espaço e visibilidade nos últimos anos.

Atire em Sofia foi escrita há mais de três décadas, mas ainda assim se mantém contemporânea. A escrita profunda de Sônia Coutinho fascina pela simplicidade, pela diversidade e pela misticidade. Uma leitura para encantar e fazer o leitor refletir sobre a própria condição social, seja ele homem ou mulher.

FONTES:
COUTINHO, Sônia. Atire em Sofia. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

ONTIVEROS, Eva. Mutilação genital feminina: o que é e por que ocorre a prática que afeta ao menos 200 milhões de mulheres. BBC NEWS| Brasil, 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47136842. Acesso em: 08 de ago. de 2022.

Sobre a autora:

Shirley Pinheiro

Graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri.

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