DÍVIDAS LITERÁRIAS

Em homenagem a Nilton Maciel

Adoro filmes sobre a máfia, especialmente os ítalo-americanos. Desafio no Bronx é um deles. Nele, um garoto conquista a simpatia de um vizinho, um poderoso chefe da máfia instalada no bairro. O homem o “adota” dá-lhe emprego e proteção. Tudo, claro, a contragosto do pai, um honesto motorista de ônibus interpretado por Robert De Niro, o melhor de todos.

O homem da máfia passa ao menino lições de mundo que ele carregará por toda a vida. Certa vez, convence-o de que em vez de agredir, ele deveria se afastar de um mal pagador, um rapaz que criava mil artimanhas para não pagar sua dívida, uma pequena quantia que lhe devia.

Assim como a personagem velhaca da película, também tive algumas dívidas constrangedoras. Por bem, não eram dívidas pecuniárias, e sim literárias. Explico: eu devia a mim mesmo e a alguns autores – vivos ou mortos – a leitura de algumas obras literárias. Eu também me utilizava de diversas artimanhas para fugir dos credores – escritores (os vivos), alunos e outros que me perguntassem sobre tais livros.

Por anos tive uma dívida com Machado de Assis. Por vários anos lhe devi a leitura de Quincas Borba. Evitava comentá-lo, pois me envergonhava ter de usar frases feitas, clichês, para fingir conhecer a obra. Coisa típica de um falso leitor. Quando finalmente o li, lamentei muito por ter adiado tanto a leitura daquela obra-prima. Reli posteriormente e fiz, mais de uma vez, a releitura das teorias mirabolantes do filósofo maluco e seu alter-ego cachorro. Saldava assim minha dívida com o bruxo do Cosme Velho.

Bem diferente ocorreu com Euclides da Cunha. Cansado de fugir, decidi um dia, em plenas férias de julho, encarar a leitura de sua principal obra. A empreitada estendeu-se por todos os dias daquele mês. Como um penitente em autoflagelo, entreguei-me à leitura de Os Sertões. Um desafio em cada uma de suas três partes. Com muita dificuldade venci A terra; depois, com menor sacrifício, concluí O homem. Quando cheguei à última etapa, A luta, por ser mais dinâmica, encontrei enfim, o prazer em ler e me redimi com o autor. A leitura me trouxe benefícios incalculáveis.

De todas as minhas dívidas de leitura, a mais constrangedora ocorreu com um escritor cearense ainda vivo à época. Ele acabava de voltar para a terra natal, disposto a morar novamente em nosso estado. Vi-o na tevê. Um dia, encontrei-o no lançamento de um livro de Amílcar Bettega, escritor gaúcho. Metido que sou, não procurei o astro da festa, e sim o meu conterrâneo que ali estava com uns livros à mão. Para mostrar que o conhecia, até mencionei um de seus primeiros escritos, O cabra que virou bode. Era Nilton Maciel, um excelente e prolífico escritor.

Recebeu-me com simpatia e respeito. Presenteou-me com um livro seu, Os Luzeiros do mundo. Tratou-me, na dedicatória,como “um contista em exercício”. Deu-me uma responsabilidade, pensei. Além da obrigação de ler seu livro antes que nos encontrássemos novamente.

Mas o homem era muito ativo, presente em todo evento literário na cidade. Encontrei-o no lançamento de uma revista literária que ele editava, a Kaos portátil. Eu não havia lido seu livro. Tentei me esconder, mas foi inútil. Cumprimentei-o e não se tocou no assunto. “Deve estar esperando a hora certa pra me fazer a cobrança”, pensei. A contragosto, fugi dali.

E vieram outros encontros. Ainda com alguns capítulos para finalizar a leitura, tinha sempre de criar artimanhas pra fugir de sua visão e da cobrança. Não queria decepcioná-lo, ainda mais depois que soube que o homem tinha fama de brabo.

Certa vez, numa Bienal do Livro, lá estava ele numa mesa redonda. Dois escritores, um editor e um quadrinista compunham a mesa. Sentei-me num ponto estrategicamente protegido de sua visão. Muitos adolescentes na plateia, ninguém lhe dirigia perguntas. Senão todas, a maioria destas versavam sobre o universo de Harry Potter, Homem Aranha ou mangá. Enfim um garoto dirige-se a Nilto Maciel e lhe pergunta de onde vêm suas ideias.

A resposta não poderia ser mais brusca. O escritor encara o rapaz com um olhar implacável feito uma arma de fogo. O garoto treme.

O senhor sisudo não mais olhou para a plateia, levantou-se em silêncio, recolheu todos os seus livros, acenou para seus amigos da mesa e simplesmente se retirou do evento.  Com um sorriso tímido, um deles acalmou os demais: “Esse é o Nilto”. E continuaram o debate.

O pavor do garoto não foi maior que o meu, visto que meu delito era bem mais grave que uma pergunta batida. Eu tinha uma dívida literária com aquele senhor que caminhava furioso… em minha direção! Abaixei-me na cadeira, cobri o rosto com um livro. Escapei. 

Saí dali decidido a dar cabo da leitura daquele livro. E não só o li. Fiz fichamento e resenha. Li ainda outro título e um artigo escrito por ele. Eu nada lhe devia enfim. Estava pronto para conversar com o autor, pois estava quitada minha dívida de leitor.

Mas o encontro não veio. Nem poderia mais ocorrer. Um dia seria surpreendido com a notícia triste de que nossa literatura havia perdido um de seus grandes nomes. O autor de obras incríveis como A Rosa Gótica, A Leste da Morte e muitas, mas muitas outras, fora encontrado morto em sua própria residência.

A quem possui leituras pendentes, sugiro que as faça, que não acumule dívidas literárias. Você sairá lucrando. Sugiro também que inclua autores cearenses em suas leituras. Conheça e valorize nossos excelentes autores a exemplo de Nilto Maciel.

Sobre o autor:

Ivan Melo

Graduado em Letras pela Universidade Estadual do Ceará – UECE/ Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

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