O som do rugido da onça

Sempre me questiono o que faz um livro premiado ou não. O som do rugido da onça, da escritora pernambucana Micheliny Verunschk ganhou, em 2022, o mais tradicional prêmio literário do Brasil concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CDL).

No caso da obra em questão, tenho duas suposições para tamanha premiação. A primeira diz respeito ao fato de a autora vestir sua prosa de um lirismo sensível capaz de atravessar qualquer coração empedernido. A narrativa lírica é aquela em que as palavras, embebidas pelo ritmo, sonoridade e cadência, dançam diante dos olhos dos leitores.

A segunda suposição tem a ver com o fato de Micheliny Verunschk valer-se da união entre discursos – literário, histórico e antropológico – para desfazer a versão dos exploradores como “salvadores da pátria” ao resgatar crianças indígenas alegando que elas estavam sob o jugo dos “bárbaros”. A autora volta-se para aquele, ou melhor aqueles, que foram vilipendiados, expatriados e esquecidos. Um ciclo de exploração que parece se fortalecer com a passagem do tempo e adoecer a condição humana.

A obra se divide em três momentos. Antes deles, há um texto que narra a criação do mundo por Niimúe, mito do povo indígena que habita o rio Solimões. O primeiro instante traz uma epígrafe de Isabela Figueiredo: “No princípio eu era de carne e estava na terra”, do Caderno de memórias coloniais. Contada de forma não linear, somos apresentadas a história trágicas de crianças retiradas de seu habitat.

Iñe-e, foi presentada pelo seu próprio pai, a dois cientistas brancos, Carl Martius e Johann Spix, que estiveram em solo nacional no ano de 1817 para conhecer a flora, a fauna e os povos originários.  Depois do encontro entre a Onça Grande, Tipai uu, o pai de da menina começou a achar que entre as duas havia um pacto, por isso começou a ver a filha como inimiga. Além dela, haviam outras crianças, como o menino Juri, capturado e vendido como escravo.

Durante a longa viagem “confusa e dolorosa” mar a dentro para Munique, Iñe-e se questiona sobre a morte, sobre a natureza da guerra entre tribos em que os vencidos eram coisificados, relembra tudo o que deixou para trás e se pergunta se conseguiria voltar para casa, embora dentro de si, soubesse que nunca mais reveria os seus.

Por mais que os naturalistas se mostrassem gentis e atenciosos, Iñe-e sabe que aquilo só poderia ser um engano, pois “Como pode ser bom alguém que compra outras pessoas?” (p. 28). A ausência de respostas, o medo, a melancolia e o vazio que sente dentro de si vão a matando lentamente.

A segunda parte traz uma epígrafe de Grande: Sertão Veredas, de Guimarães Rosa: “A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito diverso do que em que primeiro se pensou”.  A fusão entre duas histórias acontece: a de Iñe-e e da jovem Josefa, na cidade de São Paulo, séculos depois da menina ter morrido. Esta, em uma exposição, ao se ver diante de si a imagem das crianças indígenas – “Os índios vistos como parte da fauna” – sente-se indignada ao compreender que a humanidade é capaz de naturalizar a barbárie. É também na parte dois que o frio se apossa dos corpos dessas crianças e os leva para outra dimensão. Primeiro é o menino Juri (Caracara-í), vítima de uma pneumonia crônica e de supurações causadas pelo clima europeu. Depois, Iñe-e.

Por fim, temos a seguinte epígrafe: “Sabemos que os mortos vão se juntar aos fantasmas dos nossos antepassados nas costas do céu, onde a caça é abundante e as festas não acabam”, de Davi Kopenawa, em A queda do céu. Na terceira parte, conhecemos a Onça Grande, Tipai uu e assistimos ao reencontro e à fusão entre ela e a menina Iñe-e gerando Uaara-Iñe-e – “num instante muito rápido onça era menina, e menina era onça” (p. 128).

O som do rugido da onça é uma daquelas obras que nos faz pensar na íntima relação de exploração do homem pelo homem que gera consequências devastadoras para a existência humana. Fala ainda da memória, direito a terra, dos laços familiares, bem como da simbiose que há entre a natureza e os povos indígenas. Quando um país aprova o “projeto do marco temporal das terras indígenas”, que prevê que os povos originários somente têm direito às terras que já eram ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, ele legitima a morte de outras crianças como Iñe-e e Juri.

FONTE: VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça.  São Paulo: Companhia das letras, 2021.

Sobre a autora:

Luciana Bessa Silva

Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler

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