Houve quem dissesse que se tivessem sido perdidas todas as leis e escritos da história brasileira dos primeiros 50 anos do século XIX, e ficassem apenas as comédias escritas por Martins Pena, seria possível reconstruir, por elas, a fisionomia moral de toda esta época.
O autor dessa ideia é apenas um dos maiores críticos literários de todos os tempos: Sílvio Romero. O dramaturgo com o poder (re)contar parte da História brasileira por meio de seus textos e dos tipos criados, é aclamado como o Molière brasileiro, o pai da comédia francesa.
O dramaturgo responsável por introduzir a comédia de costumes no Brasil, Martins Pena, nasceu em 05 de novembro de 1815, no Rio de Janeiro. Com um ano de idade, era órfão de pai, João Martins Pena; aos dez anos, de mãe, Ana Francisca de Paula Julieta Pena.
Foi criado por tutores que o queriam na vida comercial, motivo pelo qual aos vinte anos de idade já havia concluído o curso de Comércio, embora, sem que ninguém soubesse, seu interesse era a Literatura e o Teatro.
Três anos após sua formatura, em 1838, sua peça O juiz de paz na roça foi representada no Theatro São Pedro de Alcântara, pela afamada companhia João Caetano. Nesse mesmo ano, Gonçalves de Magalhães, introdutor do Romantismo brasileiro com a obra Suspiros poéticos e saudades (1836), estreia com Antônio José ou o Poeta e a Inquisição pela mesma companhia.
Não podemos nos esquecer de que desde a independência do Brasil em 1822, os homens das letras, das artes e das ciências estavam empenhados em desconstruir a pecha de nação colonizada. Ainda em 1836, Magalhães, responsável pela Revista Brasiliense de Niterói, publica um artigo defendendo a construção de uma literatura nacional. A valorização das artes de modo geral tinha o objetivo da criação de um projeto de uma Civilização Brasileira capaz de despertar o sentimento de brasilidade.
O juiz de paz na roça, ato único em vinte e três cenas, foi forjada na ironia e no humor para retratar situações cômicas de um juiz de paz corrupto que se vê diante de casos inusitados pelo homem da roça e de mulheres faladeiras.
Com uma pena afiada, Martins é hábil em criticar as convenções sociais, o casamento, a família, o governo, além de satirizar figuras, como os novos ricos, políticos inescrupulosos, padres e juízes. Em uma das cenas entre o juiz de paz e o personagem Manuel André é possível ver uma crítica à atuação da Justiça no interior do Brasil.
Quando este pede que uma contenda seja julgada (cena IX), escuta da autoridade que no momento não seria possível, pois está “atravancado com um roçado”, mas que seu compadre Pantaleão poderia fazê-lo. André explica que o Sr. Juiz “também está ocupado com uma plantação”. Não gostando da réplica, é enfático ao declarar: “Olhe que o mando para a cadeia”. Ao que Manuel André responde: “Vossa Senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda”. Logo escuta: “A Constituição! Está bem! Eu, o juiz de paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande-me prender este homem”. Julgar a seu bel prazer parece ter sido uma prerrogativa brasileira do século XX, e XXI também, se levarmos em consideração a prisão de Luís Inácio Lula da Silva. Apenas em 1965, foi criada a Lei de Abuso de Autoridade, atualizada em 1989, depois de várias críticas de especialistas que alegavam ser ultrapassada e engessada.
Com uma assinatura autêntica, bem humorada, satírica e irônica, Martins Pena produziu uma obra extensa, cerca de trinta peças, entre comédias, sátiras, farsas e dramas, por mais de uma década – 1838 a 1847 – em meio a peças estrangeiras. Graças a pena de Martins, o teatro possibilitou que pudéssemos repensar o que é ser brasileiro.
Sobre a autora:
Luciana Bessa Silva
Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler