Carta para o meu amor

Você não está nos meus primeiros planos, afinal a vida é vasta e cheia de cortinas. Outro dia, há algumas dezenas de anos, via você encardido de ferrugem, poeira e suor, transitando entre os vagões e as rochas de gipsita, de vez em quando soltava pipa e chutava o chão querendo acertar a bola. Aprendeu cedo brincar com o pé de ferro e o martelo, no desafio de não martelar a mão. Mexia na cola, no vazador, na faca e no esmeril, juntava pedaços de couro e borracha. Folheava as revistas de moda e se deliciava ao ver os desenhos rápidos e precisos dos estilistas. Sempre gostou da tesoura para repartir cores e criar formas, cresceu vendo fazendas, de vez em quando ganhava algumas, fazenda naquela época era sinônimo de tecido. Conheceu o grude, era a cola do momento, passava horas colando a inocência e os desejos, na casa da vó. 

Você era curioso: desmontava as coisas para descobrir o que se escondia por dentro. Sempre foi impulsivo, adorava os telhados, corria, pulava, quebrava, inevitavelmente, as telhas e recheava as casas de goteiras. Lembra do pé de seriguela? Era da vizinha de quintal, quase fundo a fundo, passava horas atrepado, chupando até o caroço.  

Tinha também a dispensa: uns dois metros para cada lado, cheia de bagunça. Acho que foi o seu primeiro baú, sempre sonhou em ter um quarto, mas nunca dispensou os baús. A sua dispensa era um mix: Fazia seus experimentos, guardava suas preciosidades afetivas e dava a caricatura de sua alma, aquele espaço ninho.  

Você lembra das músicas que embalavam teus sonos? As orquestras do cabaré eram tuas músicas de ninar. Isso mesmo: orquestra no cabaré. Pelas manhãs, sempre te chamava atenção aqueles enormes pássaros pretos, no muro amarelo. Eram os urubus sobrevoando a sobrevivência. 

Lembra da escrivaninha?  Aquela que passava na televisão? As crianças nas novelas tinham escrivaninhas, você tinha apenas a vontade. Aquele seu primo enfiou uma faca para retalhar as suas esperanças ao dizer que seu pai nunca teria condições de comprar a escrivaninha, mas você nunca deixou de escrever seus sonhos.      

Outro tempo tu querias ser ninja, mas começou querendo ser He-man. Personagem louro, cabelo liso, musculoso e com super poderes, ainda usava pastinha, era moda, cortar o cabelo deixando o rosto quadrado. Quem era você para você? O menino magro, fraco, cabelo embolado e sem nenhum poder.   

Não sei quantas cicatrizes traz da escola, mas lembro que que era um espaço de muita luta e bastante violência. Na maioria das vezes tinha feição de prisão e quem devia ensinar, torturava, degolava as vozes e a crença no amanhã, mas você sobreviveu. Alguns sobrevivem às ditaduras, mas já não respiram da mesma forma.  

Lembra quando as paredes eram o suporte para teus bilhetes de existência? Às vezes, apenas queremos declarar a nossa necessidade de acolhida. Ainda escuto você pronunciando o que não pronunciou: Eu existo. 

Você tentou ser feliz, mas a felicidade não é uma permanência, mas uma tentativa, continua tentando. 

Ser verdadeiro é um perigo, então você é uma ameaça. Ser sensível é uma proibição dos tempos atuais, nos ensinam a engolir os choros e esconder os brilhos, mas você não consegue ser personagem.  

Quase morreu ou foi morrendo aos poucos. Era segunda-feira, de um ano qualquer, a morte chegou trazendo o ódio e a privatização da vida alheia. Seu sangue escorria junto às fezes, como rios de águas turvas. 

No caminho encontrou flores e muitas rosas. Cercas quase sempre delimitam os percursos dos sorrisos. Mas o que seria mesmo a liberdade? Não faço ideia! Parece que cada profecia de liberdade reside numa jaula e esse é o desafio, existir na contradição.      
     
Lembra quando ele nasceu? Você não acreditava que podia ser capaz de gerar vidas e amar.  Talvez, ele seja o seu He-man. Sobre a história das árvores e dos livros, você já plantou algumas e escreveu alguns e continua querendo viver. 

Tem arames farpados neste mundo e você faz parte dele, mas quer a terra dividida, pão e poesia na mesa. Raimundo e Maria, fez o possível, te amam sem dizer, eu te amo.  Eu também te amo mesmo te esquecendo de vez em quando.

Sobre o autor:

Alexandre Lucas

Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho no Ceará, pedagogo, artista/educador, militante do Coletivo Camaradas e a integrante da Comissão Cearense do Cultura Viva.

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