Luiz Gonzaga, “minha sanfona, minha voz, o meu baião”

“Modéstia à parte, mas se eu não desafino
Desde o tempo de menino
Em Exu, no meu sertão
Cantava solto que nem cigarra vadia
E é por isso que hoje em dia
Ainda sou o rei do baião”

Ser nordestino, como disse o poeta, é uma sorte arretada, mas isso implica também, no enfrentamento de vários preconceitos e estereótipos, de violência, de pobreza, de seca, dentre outros. Mas se tem uma máxima nordestina que muito me agrada é que todos nós já nascemos escutando Luiz Gonzaga. Não importa se você prefere rock, pop ou samba, se nasceu no Nordeste, com certeza conhece o Rei do Baião e, provavelmente, gosta de suas músicas.

Dono de uma voz inconfundível, Luiz Gonzaga do Nascimento foi o maior responsável por difundir a cultura nordestina pelo resto do país. De chapéu de couro e gibão, roupa utilizada pelos vaqueiros, Gonzagão conquistou o Brasil cantando músicas sobre o cotidiano nordestino, sobre a nossa cultura e sobre as alegrias e enfrentamentos do sertão.

Filho de Januário José dos Santos e Ana Batista de Jesus, também conhecida como Santana, Luiz Gonzaga nasceu em Exu – PE, em 13 de dezembro de 1912, no dia de Santa Luzia, padroeira dos olhos e da visão, em homenagem à santa, foi batizado como Luiz. Seu sobrenome, Gonzaga, vem do santo italiano São Luís Gonzaga, e Nascimento é por causa do mês em que nasceu, dezembro, o mesmo que o menino Jesus. Com tanta santidade em seu nome, era de se esperar que o garoto fosse abençoado.

E o seu talento não me deixa mentir. Inspirado por seu pai, que tocava nas noites de Exu e, durante o dia, dividia-se entre o conserto de instrumentos e os cuidados da roça ao lado da esposa, muito cedo Luiz aprendeu a tocar sanfona. No entanto, sua veia artística não agradava sua mãe, que queria que o filho se dedicasse à lavoura. Mas, como em sua canção “Macapá”, parceria com Humberto Teixeira, era a música que atraía Luiz Gonzaga, e esta tornou-se seu ofício — Eu não tinha nem dez anos/ Minha mãe veio me falar/ Me pôs calça de homem e me disse/ Vai, meu fio, vai trabaiá/ Desde então que eu toco e canto/ O meu fole a me ajudar/ Com o baião, siridó, balanceio/ Fiz o meu Brasil dançar/ Só faltava mostrar essa dança/ Que eu vou apresentar.

Aos 17 anos, Luiz saiu de Exu fugido, após uma severa surra que recebeu da mãe por causa de um namoro proibido com Nazarena Alencar, uma estudante, filha de uma família importante da cidade que não ficou nada contente em ver a moça (branca) namorando um roceiro negro, “tocadorzinho de meia tigela”. Quando soube do namoro, o pai de Nazinha ficou contra o casal e, depois de uma discussão na feira, o homem ameaçou Luiz, sugerindo que sua mãe o mandasse embora para não acontecer uma tragédia, despertando a ira da mulher que, ao chegar em casa, espancou o filho. Luiz Gonzaga, que também era contador de história, descreve o acontecido da seguinte forma: “só fugi de casa porque eu queria casar. Mãe era mulher violenta. ‘Casar? hum’. Nós era tocadorzinho de pé de serra, namorador como o diabo, neguinho fiota, namorei uma estudante. Ah menino, quando o pai da moça soube deu uma popa da mulesta ‘Ha, tocadorzinho sem futuro. Luiz, casar com? Deixa ele vir pra cá que eu dou-lhe uma pisa’. Eu soube. No dia da feira, tomei umas lapada de cana, escorei o homem na feira. ‘Ô senhor Raimundo, o senhor me chamou de molequinho sem futuro?’, ‘E o que mais, Luiz?’, ‘O senhor disse que eu era um tocadorzinho de meia tigela?’, ‘E o que mais, Luiz?’, ‘Que eu não prestava pra casar com sua filha’, ‘E o que mais, Luiz? Mentira, Luiz! Isso é invenção desse povo. Tu? Meu coração, filho de Januário e de Santana’. O homem era muito vivo, eu saí dali, fui contar vantagem no meio dos amigos: ‘Taí disse que o homem era brabo? Fui lá, escorei ele no meio da feira, disse-lhe o diabo, eu disse as do fim e ele se acovardou’. Nessa hora mesmo ele tava conversando com mãe lá na feira das cordas: ‘Santana, foge daqui com Luiz, pra evitar uma desgraça, me insultou, só não dei-lhe umas tapas porque é seu filho’. Na mesma hora nós voltamos pra casa, chegamos em casa assim, todo mundo se admirou: ‘Mas Santana, essa hora já voltou da feira? Não vendeu nem as corda, o que que houve?’ Daí a pouco, menino, foi um São João de Reis, lá dentro da camarinha: ‘Não queria matar o homem? Toma toma valente’. Meu pai na porta, quando eu fugi, que fui passando perto do meu pai, meu pai que nunca tinha me batido aproveitou e emendou”.

A humilhação da “pisa” e o desejo por novos ares foram suficientes para levar o jovem embora de sua cidade natal. De carona com um amigo tangedor que entregava mercadoria no Crato, veio até o Cariri, onde vendeu sua sanfona e comprou uma passagem de trem para Fortaleza. Na capital cearense, Luiz se alistou como voluntário no exército, onde passou nove anos e participou de cinco revoluções, mas sem nunca dar um tiro. A experiência também resultou em música: “Toque de Rancho” — “No tempo certo/ Fiz o meu alistamento/ Tô aqui senhor sargento/ Pra fazer a inspeção/ Quero servir/ Ao exército brasileiro/ Quero ser logo o primeiro/ A entrar no batalhão”.

Luiz Gonzaga saiu do exército em 1939 e, ao invés de voltar para Pernambuco, foi para o Rio de Janeiro, na época, a capital do país. Foi lá que ele conheceu o baiano Xavier Pinheiro, que se tornou um grande amigo e, juntos, passaram a tocar tangos, fados e valsas em bares e cabarés. Numa dessas apresentações, um grupo de cearenses que estava entre o público, pediu para que a dupla tocasse alguma coisa do “norte”, foi nessa que Luiz compôs a música instrumental “Vira e Mexe”, que foi um divisor de águas em sua carreira. Com ela, no programa de rádio de Ary Barroso, venceu, pela primeira vez, o concurso de calouros — Não teve Ary que aguentasse. Foi nota cinco!  Naquele dia eu comi dois pão”. A partir de então, ele foi contratado pela rádio.

Em 1941, Luiz Gonzaga gravou, como solista de sanfona, dois discos, com as músicas “Véspera de São João” e “Numa Seresta”. No entanto, embora encantados com sua versatilidade, os seus contratantes não se agradavam de sua voz, considerada ruim e nasalada, por esta razão, durante seus primeiros anos de carreira, foi impedido de cantar. Gonzaga conta que, o diretor da rádio chegou a colocar um aviso na programação o proibindo de cantar, pois era contratado como músico “o que é mais ou menos, agora como cantor é ruim demais”. A primeira vez que gravou com sua voz, foi em 1945, com a música “Dança Mariquinha”.

A partir de então, Luiz Gonzaga desembestou no cenário musical nacional, com letras simples que remetiam ao Nordeste e à cultura de sua região. Luiz foi a grande voz que o Nordeste precisava para se estabelecer como uma região “recém-criada”. Ainda hoje, 34 anos depois de sua morte, Luiz Gonzaga, sob a alcunha de Rei do Baião (único brasileiro — na opinião desta que vos fala — que merece o título de rei) é o maior símbolo de cultura nordestina, tanto que é inconcebível a ideia de uma pessoa, nascida no Nordeste, que não conheça sequer uma música dele.

O cantor pernambucano foi mestre de vários nomes do forró e de vários artistas da região. Os cearenses Belchior, Ednardo e Fagner; os baianos Caetano veloso, Gal Costa e Gilberto Gil; os pernambucanos Alceu Valença e Dominguinhos; os paraibanos Elba Ramalho, Zé Ramalho e Flávio José, são alguns dos artistas influenciados pelo Rei do Baião.

Se vivo fosse, hoje Luiz Gonzaga estaria completando 111 anos. Atualmente, a data do seu nascimento celebra o Dia Nacional do Forró, considerado, desde 2021, patrimônio cultural do Brasil, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan. Em 50 anos de carreira, Luiz gravou mais de 70 discos e compôs músicas com vários parceiros, Humberto Teixeira, Hildelito Parente, José Dantas, Patativa do Assaré, dentre outros. Suas letras retratam o dia-a-dia do povo nordestino, desde as tradições de São João, às secas enfrentadas pelos sertanejos; algumas com tom de humor, outras de súplica e até protesto político, como é o caso de “Vozes da Seca”, em que faz um apelo ao então presidente Getúlio Vargas, na época  eleito democraticamente, sobre a falta de investimento do Estado na região Nordeste — “É por isso que pedimos proteção a vosmicê/ Homem, por nós, escolhido, para as rédias do poder/ Pois doutor, dos vinte estados, temos oito sem chover/ Veja bem, mais da metade do Brasil tá sem comer/ Dê serviço a nosso povo, encha os rios e barragens/ Dê comida a preço bom, não esqueça a açudagem/ Livre assim, nós da esmola, que no fim desta estiagem/ Lhe pagamo inté os juros sem gastar nossa coragem/ Se o doutor fizer assim, salva o povo do sertão/ Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação/ E nunca mais nós pensa em seca, vai dá tudo neste chão/ Como vê, nosso destino, mercer tem na vossa mão”.

Com um legado eterno, Luiz Gonzaga é a cara do Nordeste.

Shirley Pinheiro

Graduada em Letras pela Universidade Regional do Cariri.

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