Luciana Bessa
Geograficamente, santista; por amor a João Pessoa, paraibana. Maria Valéria Rezende começou a escrever cedo, mas publicou seu primeiro livro com quase sessenta anos: “Vasto Mundo” (2001).
Leitora do poeta “gauche” Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), dele escolheu o verso que daria título à sua estreia literária: “Mundo mundo vasto mundo / mas vasto é o meu coração” (“Poema de Sete Faces”). Para Rezende, que escolheu entre se casar e se tornar freira, a segunda opção; que trabalhou com educação popular, atuou em diferentes regiões do Brasil e já deu a volta ao mundo pelo menos três vezes, palavras da própria autora em entrevistas, a vastidão do lado esquerdo do peito contaminou sua literatura: são dez obras no campo infantil/juvenil, cinco romances e três (obras) de contos.
Na opinião de Rezende, seu segundo livro – “O Voo da Guará Vermelha” (2005), que conta a história de obscuridade das personagens Irene e Rosálio, deveria ter sido premiado. Não foi. O prêmio, ou melhor, os prêmios foram reservados para o livro “Quarenta Dias”, publicado em 2014, e agraciado com dois jabutis no ano seguinte nas categorias de melhor romance e melhor livro de ficção.
Assim como Jesus recolheu-se em jejum por quarenta dias no deserto, Alice, professora paraibana aposentada, passou quarenta dias pelas ruas de Porto Alegre procurando um tal de Cícero Araújo. Na verdade, o filho da manicure Socorro foi o álibi perfeito para Alice encontrar a si mesma, depois que sua filha Aldenora (Norinha) obrigou-a, com chantagem emocional, a se mudar de sua terra natal, seu porto seguro (Paraíba) para o frio do Sul para assumir o cargo de “avó profissional”.
Contudo, quando Alice chega em um apartamento “modernoso” (Porto Alegre), não se reconhece naquele lugar estranho que parece “cenário de televisão”. Como não bastasse, sua filha comunica-a que precisará passar uns seis a oito meses na Europa, pois ganhou uma bolsa de pesquisa.
Alice, que constantemente faz menção à sua xará, Alice (Lewis Carroll), sente-se como “um bicho estranho em terra estranha”. Alice, que também se intitula a professora Póli (em alusão à obra “Polliana”, de Eleanor H. Porter), procura fazer o “jogo do contente” diante daquela situação que vergonhosamente cedeu. “O resto é consequência”.
Para buscar a si mesma, a narradora-personagem vale-se de um caderno com trezentas folhas amareladas, cuja capa é a “Barbie”. A boneca, que segundo Alice, nasceu para ser vestida e despida pelos outros e nunca envelhece, torna-se sua amiga e confidente. Neste caderno, a mãe de Norinha (não em ordem cronológica, pois a memória é precária e a gente esquece) passa sua vida a limpo.
O leitor, então, fica sabendo do desaparecimento de seu marido (Aldenor), sua felicidade em ter uma filha e amiga (Aldenora), a distância que o tempo impôs às duas, a partir do momento em que ela entrou na Universidade, o namoro com Umberto, os planos do casal em ter um filho e Alice se tornar avó profissional, as chantagens a que submeteu à sua própria mãe para ela se mudasse para Porto Alegre, a busca de Alice por Cicero Araújo, ou seja, a busca de si.
“Quarenta Dias” apresenta uma linguagem acessível, envolvente e instigante. É uma pintura sobre as relações familiares e sobre um Brasil dividido pelo progresso (Sul) e pelo atraso (Nordeste), mas que se olharmos com os olhos do coração descobriremos um vasto mundo camuflado de “brasileirinhos” que precisam uns dos outros.
Sobre a Autora:
Luciana Bessa Silva
Idealizadora do Blog Literário Nordestinados a Ler