01. Mulher lésbica, caririense, leitora, escritora, doutora em História, professora universitária. Dia Nobre “carrega o conhecimento de quem sabe sentir dor”?
não sei se “sei sentir dor”. acho que é mais uma questão de continuar apesar de.
conservar em mim tantas identidades é algo esplêndido.
poder aprender de tantas formas,
a partir de tantos lugares,
a todo o momento.
02. Seu primeiro livro de poemas “Todos os meus humores” (2020) e, mais recentemente, “No útero não existe gravidade” (2021) são de uma força e de uma sensibilidade que transpassam o leitor. Quais as aproximações / distanciamentos entre eles? Como foi se reconhecer na condição de escritora e que desafios enfrentou/ enfrenta?
os dois livros foram escritos em momentos diferentes.
todos os meus humores é um quebra-cabeças montado a partir dos meus diários. uma experiência de bricolagem em que recortei e colei coisas que escrevi ao longo de quinze anos, em várias fases
da vida.
por isso, ele é mais fragmentado, traz várias estações que se interseccionam entre si.
no útero não existe gravidade foi uma espécie de catarse terapêutica. escrito ao longo do primeiro ano de pandemia, ele marca o retorno à uma questão que me inquietava há bastante tempo, mas que demorou a ser elaborada: a partida e, consequente,
morte simbólica da minha mãe.
vejo os livros muito diferentes entre si, embora algumas obsessões minhas estejam presentes em ambos.
imagine uma mulher diante do mar. o primeiro livro foi como deixar que a onda molhasse apenas aos pés. no segundo, ela foi engolida pelo mar.
tem sido uma aventura me entender como escritora. publicar meus livros, ser lida.
o maior desafio foi me aceitar enquanto tal.
03. Você sempre diz que sua poesia é pessoal, mas não é confessional e No Útero Não Existe Gravidade, seu livro mais recente, é uma obra de autoficção. Como foi para você o processo de escrita desse livro? Os leitores a confundem com sua protagonista?
os leitores sempre pensam que se um livro é autoficção, ele necessariamente, fala
A verdade
sobre o que aconteceu. como escritora e historiadora, devo dizer que nem a literatura, nem a história, são espelhos da realidade.
a narrativa é uma invenção. eu não estou confessando nada.
o que eu faço é esgarçar a memória. eu elaboro as lembranças e os esquecimentos, meus e de outras pessoas. eu invento histórias para mim mesma. eu não sou a personagem do meu livro, mas ela é parte de mim porque enquanto narradora eu a construo no texto.
no processo de escrita eu lidei com duas facetas de uma mesma moeda: é doído e recompensador ao mesmo tempo. feito um bordado que mostra um desenho bonito mas é cheio de nós de remendos na parte interna do bastidor.
04. Sua obra é repleta de frases marcantes. Seja para escrever na alma, seja para deixar o leitor chocado, elas são sempre memoráveis e muitas vezes provocativas, como por exemplo: “O senhor é meu pastor e ele sabe que sou gay”, de seu conto A Revelação, em que você faz essa brincadeira com a referência cristã. Como tem sido o feedback dos leitores diante de temáticas consideradas tabus? Sua escrita tem essa função de provocar e questionar o que está posto?
eu cresci em uma cidade religiosa.
em uma casa religiosa.
criada por uma avó religiosa.
depois me tornei historiadora e fui estudar a religião (risos).
é uma linguagem que me dá espaço para a subversão.
penso que uma escrita que não provoca não vale a pena ser lida.
eu escrevo para desafiar os padrões.
é um eterno sou-existo-resisto.
acredito que por isso, meus livros encontram as leitoras certas que se inquietam e desafiam o mundo junto comigo.
05. Acompanhar você nas redes sociais é como encontrar um mar de referências a mulheres que usam a escrita como forma de expressão e de resistência. Que escritoras a influenciaram e que você poderia indicar para nossos leitores?
muitas mulheres fecundaram o meu espaço de experiência.
ana cristina césar, clarice lispector, virginia woolf, sylvia plath, conceição evaristo, toni morrison, isabel allende, carson mccullers, elena ferrante, jarid arraes, para citar algumas.
elas me apontam para um horizonte repleto de expectativas.
06. Que mensagem você poderia deixar para os leitores e leitoras do Nordestinados a Ler, como também para aqueles que ainda não descobriram a importância de falar e debater sobre a Literatura produzida por mulheres?
vou responder com um clichê que amo:
saía do lugar de conforto e busque o que te incomoda.
a escrita de mulheres é como um grito no escuro. te arrepia, abre um mundo cheio de identificações, referências e experiências únicas que reverberam no corpo.
Sobre a autora:
Dia Nobre
Escritora, doutora em História, professora universitária.