Rachel de Queiroz e o legado da mulher cearense

Por muito tempo as mulheres tiveram sua capacidade intelectual subjugada. Consideradas inferiores aos homens, eram impedidas de alcançar as esferas letradas da sociedade. Mas, ao passo que lhe eram negados o acesso ao conhecimento, as cobranças às mulheres que se libertavam do padrão – esposa, mãe, dona de casa – mostravam-se cruelmente injustas, exigindo delas excelência (para assim validá-las) sem lhes serem oferecidos os meios para tal.

Em 1920, na Inglaterra, o escritor e crítico literário Desmond MacCarthy (1877 – 1952) afirmou, em uma resenha publicada na revista britânica New Statesman, que “uma pequena porcentagem de mulheres tem a inteligência de um homem inteligente, no geral o intelecto é uma especialidade masculina”. Um posicionamento que ia de encontro aos pensamentos dos homens que escreviam no Brasil. O romancista alagoano Graciliano Ramos (1892 – 1953), por exemplo, ao se deparar com a qualidade literária de O Quinze, obra de estreia da escritora cearense Rachel de Queiroz (1910- 2003), não acreditou que o livro pudesse ter sido escrito por uma mulher. Em suas palavras, “o quinze caiu de repente ali por meados de 30 e fez nos espíritos estragos maiores que o romance de José Américo, por ser livro de mulher e, o que realmente causava assombro, de uma mulher nova. Seria realmente de mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça: ‘Não há ninguém com esse nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado’”. Mal sabia o autor de Vidas Secas (1938), que essa mulher revolucionária a Literatura Brasileira com outros romances, peças de teatros, crônicas e memórias. 

O fato é que Rachel de Queiroz, apesar de nunca ter se considerado feminista, (ao contrário, tecia duras críticas ao movimento), teve papel fundamental no processo de emancipação feminina, responsável por abrir as portas de espaços nunca antes frequentados por mulheres.

Nascida no dia 17 de novembro de 1910, em Fortaleza, capital cearense, Rachel de Queiroz teve que deixar sua terra natal muito cedo, em decorrência das mazelas trazidas ao sertão cearense pela seca de 1915. Assim, em 1917, a família da escritora migra para o Rio de Janeiro e de lá, muda-se para Belém, no Pará, onde permanecem até 1919, quando finalmente retornam ao Ceará.

Em 1927, Rachel de Queiroz começa a colaborar no jornal O Ceará. E, em 1930, estreia na literatura  com O Quinze, um romance/testemunho, que nasceu a partir da insatisfação da autora acerca dos livros que retratavam a seca que matou milhares de sertanejos, muitos deles foram obrigados a abandonar sua terra e migrar para outros lugares, na condição de retirantes, situação retratada por Rachel, nas vivências de Chico Bento, um dos protagonistas d’O Quinze, que parte, com a família, de Quixadá para Fortaleza, a pé, fugindo dos horrores da seca. 

“Agora, ao Chico Bento, como único recurso, só restava arribar.

Sem legume, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome enquanto a seca durasse”. (QUEIROZ, 1930)

A produção literária de Rachel de Queiroz pertence ao segundo momento do Modernismo brasileiro, a chamada geração de 30. Marcada pelo regionalismo e grande crítica social, a linguagem adotada pela escritora é enxuta e recheada de termos e expressões características da oralidade nordestina, em especial do Ceará. Suas obras são protagonizadas por mulheres fortes e guerreiras. Personagens – de Caminhos de Pedra (1937); As Três Marias (1939); Dôra, Doralina (1975); Memorial de Maria Moura (1975), que renegam o destino dado às mulheres, encarando os próprios desejos, em oposição ao machismo e patriarcalismo conservador do período.

No entanto, não foram só suas personagens que serviram de exemplo e inspiração para as mulheres de sua geração (e das gerações futuras). Em 1977, Rachel de Queiroz tornou-se a primeira mulher a adentrar um dos espaços mais  machistas da sociedade letrada do país, a Academia Brasileira de Letras (ABL), abrindo as portas da instituição, que por anos se recusou a aceitar mulheres no seu círculo seleto, para outras mulheres (ainda que poucas, desde então).

Rachel de Queiroz é, indiscutivelmente, uma das pessoas mais importantes que existiram nos limites geográficos do Brasil. Sua relevância para os cearenses é tão grande, que hoje, na data que se comemoraria o seu aniversário, celebra-se o dia da Literatura Cearense, uma forma de reconhecer a excelência dessa escritora, que levou o nosso estado, nosso sertão e nossa história para o resto do país. Reconheçamos então, o legado da nossa conterrânea, Rachel de Queiroz.

FONTES:

QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 27ª ed. Rio de Janeiro, RJ. Olympio, 1981.
WOOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre, RS. L&PM, 2019.

Sobre a autora:

Shirley Pinheiro
Shirley Pinheiro

Shirley Pinheiro

Graduanda em Letras pela Universidade Regional do Cariri.

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