Nossos porões

Hoje não quero economizar desaforos. A paciência destemperou, muito sal, muito doce. Vou pichar os muros da cidade, esmurrar as paredes, escancarar as feridas abertas da América Latina e do meu coração. Sairei sem destino, conexão e clandestino. Direi gritos para os ventos, derrubarei estátuas.

Hoje é dia de pegar a faca e sair abrindo o olho para enxergar o mundo que nos cega. Sangro enxergando melhor, sangro cego, sangro com a América Latina e como os versos doloridos das minhas pisadas. Caminho com o punhal no peito, com a dor na cara e com os dentes afiados.

Hoje vou riscar o meu quadrado, cuspir e mijar no chão.  Os versos de agora não serão adoçados, serão servidos amargo, forte e esquecido de açúcar.

Hoje não plantarei rosas, nem distribuirei cartas de esperança. Neste instante rasguei os poemas de amor de Neruda e de Vinícius, e espalhei as cinzas no meu rosto, como um soldado de guerra; *adentrando nas selvas, querendo sobreviver.

Hoje não pedirei desculpas, nem retornarei ligações. As portas estarão fechadas. Provavelmente estarei lendo sentado num vaso sanitário, enquanto derrubo monstros.

Hoje não terão gargalhadas, o palhaço morreu, sem graça. Amanhã devo acordar cedo, é carnaval e pouco me importa: a carne e a alma já não valem mais nada, mas quero falar de hoje.

Indiscutivelmente, é hoje que quero revirar a América Latina e os porões das minhas prisões. Sacudir o tempo empoeirado para falar do amanhã.

Sobre o autor:

Alexandre Lucas

Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho no Ceará, pedagogo, artista/educador, militante do Coletivo Camaradas e a integrante da Comissão Cearense do Cultura Viva.

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