Nada é de graça

Trânsito gasguito, veloz e impaciente. Segunda-feira. A velha com cara de maracujá bom para suco estava parada no entremeio da calçada e do asfalto. Trêmula de idade.  Segurava em cada uma de suas mãos três quilos de açúcar. Precisava atravessar, seguir caminho. 

Já estava atrasada. Acordei cedo, mas tinha meu mundo para ajeitar. Nem percebi se o café estava quente ou frio, engoli com um pedaço de pão em dois piscado de olhos. Passos largos, corrida contra mim mesma, tinha que chegar em algum canto, talvez numa repartição de encurtamento da idade. 

Tive que parar. Podia seguir, mas resolvi desacelerar. Olhei para aquela senhorinha cheias de valas do tempo no rosto. Carregada de açúcar encolhendo o seu tamanho. Atravessar era o nosso caminho. Segurei o seu braço com delicadeza necessária e com a outra mão acenei como se dissesse: pare, estamos passando. Passamos.

Soltei o braço. A senhorinha soltou por alguns segundos os seus sacos com açúcar. Passou a mão na testa. Olhou para cima, como se estivesse procurando algo no céu. Pegou suas sacolas e seguiu com seus passos lentos e calados. 

Eu, continuei.  Agora indignada.  Os passos apressados como de costume.  A senhorinha, cara de maracujá murcho, foi imprevisível, saiu comendo palavras. Nenhum obrigado, nenhum abano de sorriso. Nada é de graça, nada.

Sobre o autor:

Alexandre Lucas

Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho no Ceará, pedagogo, artista/educador, militante do Coletivo Camaradas e a integrante da Comissão Cearense do Cultura Viva.

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