O sofá era o mesmo

Salto alto, olhar atento, prancheta no colo, caneta na mão, mas um encontro semanal, sem café. Mãos na cabeça, parece que diante dela sempre sou revistado. Estava de mudança, naquele dia, os móveis ainda não tinham canto definido, mas o sofá estava do mesmo jeito, não sofreu alterações.

Nas minhas primeiras palavras vi seus olhos arregalados, talvez invertemos um pouco os papéis: ela sempre diz que falo com o corpo, que sou caras e bocas, mas que palavras.

Nossos encontros têm hora marcada. Queria falar mais, falo o que é possível, na esperança de reencontrar a esperança. Sabendo que nunca vou encontrar um manual de sobrevivência ou uma receitinha deliciosa para vida.

Ela seria uma escritora dolorida, mas poderia ser cômica também, guardar tantas histórias, inclusive as minhas, fico imaginando como seria a narrativa bondosa e perversa de quem vai descobrindo os labirintos alheios.

Mas naquele dia, foi de pouco sofá. A mudança exigia faxina, tinha que sair limpando. Deixar a casa com cheiro de flores e florescida. Pegou o material de limpeza e entregou nas minhas mãos, cuspiu no chão como se demarcasse o tempo e a necessidade de arrumação.

Ao sair exausto, ela sorriu como sempre faz a cada despedida. Deu-me um abraço sem tocar meu corpo. Depois, entrei na primeira cafeteria, pedi um suco, observei a entrada e saída de sorrisos. Abrir Canto Geral, de Pablo Neruda.

Sobre o autor:

Alexandre Lucas

Alexandre Lucas é escrevedor, articulista e editor do Portal Vermelho no Ceará, pedagogo, artista/educador, militante do Coletivo Camaradas e a integrante da Comissão Cearense do Cultura Viva.

    Deixe um comentário

    O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *